Minas Gerais

Coluna

Outra metamorfose

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Permanecer com música na alma mesmo sabendo da dureza da luta

Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos, ele se sentiu como um inseto monstruoso. Tentou mexer os braços e experimentou a prisão da falta de movimentos naturais. As juntas estavam endurecidas. Qualquer esforço para alterar a posição do corpo parecia se desmanchar ao longo dos nervos, perdendo a eficiência como se partisse de uma vontade estranha à própria razão. Havia um alheamento que fazia com que não se reconhecesse na própria consciência. Às costas, carregava uma carapaça firme, de cor desagradável e que rescendia um olor nauseante. Tentou falar e só lhe saíram grunhidos da boca.

Isolado, tentou recompor mentalmente suas deficiências mais imediatas, antes que alguém chegasse ao quarto e testemunhasse sua condição inumana. O outro poderia ser sua redenção, mas no momento sentia apenas a necessidade de compreensão íntima de seu novo estado. Além da disformidade do corpo, o que mais estranhava era um sentimento de perda de liberdade. Faltava ar. É difícil, a não ser quanto mergulhamos nas águas profundas, transmitir o sentimento de sufocação. E era essa a sensação de dívida, de carência essencial que se traduzia como ausência de humanidade.

À medida que a consciência se firmava, iam ficando claras para o novo animal desperto algumas situações inusitadas. Em primeiro lugar a anulação do compartilhamento de um terreno mínimo de valores morais. Os outros não eram mais iguais, e sim adversários. Começou por temer seus superiores – e se eles o vissem naquele estado, o que pensariam de suas derrotas? – para depois dedicar o mesmo pavor aos colegas de trabalho e à família. A animalidade não mexia apenas com seu corpo, mas com todas as circunstâncias. Era um bicho entre homens que se julgavam distintos.

Ao passar em revista os motivos que o afligiam, viu-se tolhido de uma série de outras faltas e prejuízos. A partir de agora não havia mais como defender direitos universais, como o do trabalho, descanso e justa paga. A própria inclinação à conversa, perdida na algaravia do silêncio imposto por palavras que não reconhecia como suas, gritadas histericamente ao vento por todos os meio inventados pelo homem, isolava as tentativas de compor um novo campo de amizade e construção de projetos coletivos. Para completar, tudo que num tempo se afigurou como ampliação de direitos agora se traduzia como reversão a privilégios.

O projeto de alienação foi se compondo aos poucos, com a estratégia bem urdida de retirada de nacos de humanidade. Impedido de trabalhar de forma realizadora, de compreender o mundo pela vedação dos espaços de conhecimento, de se alegrar com os iguais num mundo em que a felicidade é sempre um destino adiado e defeso aos pobres. Retiravam-se ainda, antes do despertar, o sentimento de ser portador de merecimentos, o impulso para a igualdade e a inclinação para a solidariedade.

Há algo de condição filosófica nesse estado larvar em direção ao nada, como se tudo se tratasse de algo inevitável. No entanto, o que mais doía era exatamente seu oposto: a certeza que era possível se bater contra essa violência assombrosa não com as artimanhas da razão, mas com as armas da resistência política. O despertar do inseto, com sua desagradável sensação de derrota, não se entregava gratuitamente aos pretensos senhores de escravos dos nossos dias. O mal-estar era um aguilhão. O despertar sombrio da melancolia carregava a bílis negra da revolta radical.

Na fábula original, nosso infeliz personagem, criado pelo gênio de Kafka, é varrido para um canto para ser esquecido. A simples lembrança de sua existência disfuncional já era um perigo. No entanto, é bom lembrar sempre foi exatamente por ter se tornado um inseto que ele pôde fugir da consciência de alienação a que o quiseram atar. Sua grande vitória foi afirmar sua condição e recusar o mundo como um dado. Jamais seria o que queriam que fosse. Nunca habitaria o mundo como sua casa.

Há momentos em que a aniquilação é obra de civilização. Destruir a violência, a ilegitimidade, a ditadura, a exclusão e a mentira são formas de vindicar a vida e sua superação. O inseto que, sabendo da dureza da luta para existir contra tudo e contra todos, permanece com a música na alma, não pode ser destruído. E carrega a dura missão de lutar por toda a humanidade. A canção da liberdade é a dança que rege agora a resistência e a lucidez. Kafkianos são os outros.

 

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