Minas Gerais

RESISTÊNCIA

“Meu território é mais sagrado do que a minha fé”

Comunidade quilombola de Manzo luta na defesa do território e da religião

Belo Horizonte |
"Se não tem terreiro, não tem família, não tem quilombo. Não vai mais existir o grupo"
"Se não tem terreiro, não tem família, não tem quilombo. Não vai mais existir o grupo" - Arquivo pessoal

Makota Kidoiale  (Cássia  Cristina), filha de Mãe Efigênia, conta um pouco da história da comunidade quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango surgida nos anos 1970, em Belo Horizonte. Aos doze anos, Mãe Efigênia começou a desenvolver atividade espiritual na Umbanda. 
“Minha mãe teve um problema de saúde sem explicação da medicina. Um dia, minha avó aceitou levá-la a um terreiro. Lá, a primeira entidade que veio foi um preto velho chamado Pai Benedito. Assim, ela começou a fazer alguns trabalhos”, recorda.
Um dia, o Pai Benedito fez uma cura para uma família que tinha boa condição financeira. A família retribuiu com um dinheiro que foi usado por Mãe Efigênia para comprar o terreno onde hoje vive a comunidade, no alto do Santa Efigênia. Surgia, assim, a Senzala de Pai Benedito, espaço fundamental na religião e vida do povo de Manzo.
Em conversa com o Brasil de Fato MG, Makota Kidoiale relata as dificuldades para defender sua cultura, sua religião e seu território, frente às pressões do poder público, o preconceito e a intolerância religiosa.

Você poderia contar um pouco das dificuldades enfrentadas nos últimos anos?
Em 2006, conhecemos algumas organizações não governamentais que cuidavam de documentações e registravam os terreiros. Esse registro era uma forma de proteção, pois havia intromissões da polícia civil nos terreiros. Quando fomos até o município para conseguir um alvará, disseram-nos que o terreno não era nosso. Levamos o maior susto. Mesmo tendo o contrato de compra e venda, as promissórias, não era válido. Quando a minha mãe e minha vó compraram o terreno, não sabiam que precisava ir a cartório registrar isso. A prefeitura diz que o terreno é do estado de Minas Gerais. Nós fomos travados de participar de vários programas, como o Minha Casa Minha Vida para quilombos, por conta disso. 

Você acredita que essas dificuldades são uma forma pressionar a comunidade para que ela saia daqui?
Sim. Um dia, a Defesa Civil chegou dizendo que ia retirar todo mundo. Nós não queríamos sair, mas a Defesa Civil nos forçava a ir para a casa de parentes, sendo que todos os nossos parentes moravam na comunidade. Quando eu disse que somos um quilombo certificado pela Fundação Palmares, os funcionários se assustaram, mas continuaram insistindo. Nos mandaram para um abrigo, um lugar sem condição para colocar nossa família. Não podíamos deixar o Sagrado no terreiro, pois é o que nos une.

Quando vocês foram para o abrigo, o que fizeram com os objetos que vocês usavam no terreiro?
É o que chamamos de Sagrado: os assentamentos, o atabaque, a comunheira, os porrões, tudo ligado ao terreiro, ficou aqui, sozinho. Foi como se dividissem a gente ao meio. As outras pessoas do abrigo ouviam suas músicas evangélicas, católicas e até pastor entrava para conversar com as pessoas. Mas toda vez que a gente tocava o tambor chamando a ancestralidade, a coordenação do abrigo reclamava. Meu irmão deu aulas de capoeira durante uma semana. Depois, a coordenação também proibiu.

Como foi o retorno à comunidade?
Já fazia mais de 90 dias que estávamos no abrigo, a pedido da prefeitura, que afirmava que iria reformar nosso quilombo. Porém, ao invés de arrumar, eles quebraram muita coisa, mas só do terreiro. Tudo aquilo que era para manter um terreiro de candomblé ativo, como a camarinha, a cozinha, estava quebrado. Eu tenho os laudos da Defesa Civil que mostram os locais com risco de desabamento e que não foram mexidos. Na minha opinião, primeiro o poder municipal teve conhecimento do que era a identidade dessa comunidade e depois atuou para descaracterizá-la. O que nos identifica como quilombo são as tradições que a gente mantém no terreiro. 

A senhora diz que o quilombo não é só lugar de morar, mas também de praticar outras tradições, como a capoeira. 
Sim. A comunidade recebia orientações pelo Pai Benedito, o preto velho incorporado pela Mãe Efigênia. Ele dizia que, se a gente quisesse quebrar nossas correntes, precisávamos começar a ensinar as crianças. A comunidade sempre foi aberta às crianças e contávamos as histórias que o Pai Benedito nos ensinava, que escravo não vivia só de apanhar e servir aos senhores, mas também tinham um jeito próprio de viver, de curar, cozinhar, plantar. Tinham o seu momento na senzala em que eram muito felizes. 

Você fala do território com muita força. Qual a relação que vocês mantêm com este lugar?
Meu território é mais sagrado do que minha própria fé. A prefeitura tinha esse conhecimento e fez um atentado para destruir a identidade da comunidade. Por quê? Se não tem terreiro, não tem família, não tem quilombo. Não vai mais existir um grupo com sua forma própria de viver. 

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