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Sonhos e desejos de construções coletivas: uma necessidade que nos permeia

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Makota: "Acreditar que, na atualidade, há igualdade é hipocrisia". Na foto, Marcha das Mulheres Negras de 2016, em Brasília
Makota: "Acreditar que, na atualidade, há igualdade é hipocrisia". Na foto, Marcha das Mulheres Negras de 2016, em Brasília - Marcello Casal/ Agência Brasil
No desmonte do Estado brasileiro, o que está em jogo é o nosso futuro

Ah! Os sonhos: como eles andam junto de nós. Sonhamos muitas coisas e vivemos a buscar a concretização desses por mais difíceis que se apresentem. No meu caso, sonho muito. E acredito que nossa luta não é em vão, por mais difícil que às vezes esta se apresente. Sou uma mulher negra, de 53 anos, que ainda acredita nas transformações que cada um de nós pode protagonizar na busca de um mundo melhor. Somos milhões homens e mulheres negros, que sonham apenas em poder viver plenamente seus direitos. Direitos que historicamente nos são retirados e que, por mais que queiram, não conseguiram fazer com que os esqueçamos. Tampouco esquecemos o que através da história nos fizeram.

Por isso, sempre buscamos conscientizar e sensibilizar o Estado e a sociedade para a necessidade das políticas públicas de promoção da igualdade racial. Entendemos que estas podem ser diretrizes, regras e princípios que norteiam as ações do Estado e da sociedade. Sejam estas definidas através de leis, financiamentos ou programas, através dos quais buscamos uma sociedade mais equânime, justa e democrática. Espera-se assim que nosso país possa num futuro próximo assegurar acesso aos direitos e cidadania plena a todos os brasileiros e brasileiras.

As políticas públicas são possibilidades concretas de promoção do desenvolvimento social, político e econômico, o que em outras palavras pode ser visto como maior equidade e igualdade entre os cidadãos e cidadãs brasileiros. A política pública voltada para o segmento racial atende a uma necessidade de lançar sobre a sociedade brasileira um novo olhar, um olhar que perceba a importância nesse processo de respeito à diversidade e a pluralidade de formação de nossa sociedade. Afinal, nosso jovem país, que tem apenas 516 anos, traz consigo nada mais nada menos que 388 anos de história de opressão e escravidão, ou seja, aproximadamente 75% de seu tempo de existência. E muito pouco tempo de democracia e liberdade para negras e negros, apenas 128 anos. Estes números explicitam o que muitos teimam em negar.

Os africanos de ontem e nós seus descendentes vivemos as consequências de uma história que sempre negou a contribuição da população negra na sua estrutura, ainda configuramos nas estatísticas como sendo a maioria de pobres e miseráveis desse país, as maiores vítimas da violência social e policial, com menor remuneração no mercado de trabalho, etc. Uma história de longa data e inegável. Acreditar que, na atualidade, há igualdade é hipocrisia, trazendo a tona o velho debate do mito da democracia racial, onde nossa sociedade figura como sendo o um paraíso, onde todos os brasileiros têm as mesmas possibilidades. Como se fosse possível tratar hoje como iguais, quem historicamente foi tratado de forma desigual.

Não há como esquecer que fomos proibidos legalmente de ter acesso a educação, através da lei complementar à Constituição do império de 1824, onde se dizia que: “[...] pela legislação do império os negros e hansenianos não podiam frequentar escolas, pois eram considerados doentes portadores de moléstias contagiosas”. Um claro impedimento a uma das ferramentas de ascensão social, este decreto foi valido até 1889. A lei de terras (nº 601) de 1850, que superfaturou o preço da terra impedindo ao alforriado o acesso à moradia, e a consequente destruição dos quilombos pelo Exército, foi uma formas encontradas para impedir o povo negro de obter sua estabilidade. Esta lei não se estendeu aos imigrantes, que, ao contrário dos negros, eram incentivados a virem para o Brasil e aqui receberem gratuitamente terra, sementes e dinheiro como incentivo. Numa clara tentativa de impedir o desenvolvimento dos negros e embranquecer nosso país. Podemos ainda citar a carnificina que significou a guerra do Paraguai, onde foi divulgado que todos os negros que fossem para a guerra, ao retornar seriam alforriados e receberiam terra para se constituírem, além do que o filho de fazendeiro quando convocado para a guerra, poderia ser substituído por cinco a dez negros. Na guerra morreram 1.000.000 de negros. E assim, poderíamos ir para uma série de tantas outras formas encontradas pelo sistema escravocrata para aprofundar a relação de desigualdade existente entre negros e não negros.

Negar estes fatos históricos e não reconhecê-los como fundamentais para a compreensão de nossa realidade é tapar o sol com a peneira do racismo. Por isso, é tão importante a efetivação de políticas públicas que assegurem reparação a população afrodescendente. Até recentemente, podíamos vislumbrar uma nova realidade para nosso país, com a implantação de políticas públicas e as ações afirmativas pró- igualdade racial, estas já faziam surtir seus efeitos, as universidades e faculdades tinham o colorido da diversidade de nosso país. Milhares de jovens negros conseguiram trilhar um caminho diferente dos de seus familiares. As ações afirmativas, a política de cotas, estavam a fazer parte da realidade de milhões de brasileiros. Controvérsias à parte, nosso país estava sendo emoldurado por uma cara. Uma nova gama de brasileiros e brasileiras com possibilidades impensáveis a tempo atrás.

Mas há, por parte de um segmento social, forte rejeição a esta transformação: não há como negar que estas medidas mexem com privilégios históricos. E isso significa tirar do armário o racismo que até então estava bem guardado. Dividir espaços sociais - sentar no avião ao lado de um negro, frequentar a mesma sala de aula. Tudo isso incomoda muito aqueles que até então não se achavam racistas, porque tinham um amiguinho negro, uma velha e boa babá negra. Muito diferente de ter que conviver em espaços públicos com uma diversidade que incomoda.

O Brasil estava mudando e muito há ainda para mudar. Mas estamos hoje vivendo uma nova realidade, a da ameaça a conquistas históricas. Nosso país, atualmente passa por uma ameaça de perdas de conquistas, de retiradas de benefícios e direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras. Um país que passa por um desmonte das chamadas políticas públicas e dos direitos. Uma realidade que grita por nossa intervenção, por nossa organização para garantir o básico. No desmonte do Estado brasileiro, o que está em jogo é o nosso futuro.

Precisamos lutar para assegurar nossos sonhos. Eles só se tornarão realidade se juntos buscarmos transformá-los em sonhos coletivos e fundamentais. Se organizados e em luta permanecermos juntos, daremos passos largos para viver plenamente a democracia, onde o fato de sermos diferentes não pode, nem deve, significar a falta de equidade e de direitos. Nossos filhos com certeza merecem viver em um país diferente, e os filhos deles ainda mais, e os filhos dos filhos deles provavelmente não precisarão ter políticas de cotas e de ações afirmativas para acessarem seus direitos.

A solidariedade e a generosidade dos homens e mulheres de bem são fundamentais em momentos como o vivido atualmente. Sem o discurso demagógico de que somos todos iguais, pois não somos - e nem queremos ser . Temos identidade e características próprias que nos tornam unos, mas com direitos iguais. Não, nós não somos e nem queremos ser uma massa acéfala, sem vontade e sonhos de um mundo melhor.

 

*Célia Gonçalves Souza é jornalista, empreendedora social da Rede Ashoka e coordenadora nacional do Cenarab.

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