Pernambuco

Pernambuco

Crônica | A reza de Dona Inácia

Presa no braço do polícia, Dona Inácia dizia baixo o nome da neta

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra
Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra - Arquivo pessoal

O primeiro tiro rasgou a lona preta. Cinco da madrugada e a manhã entrou no barraco pelo rombo que a bala deixou. Meu caçula já acordou berrando, Doutor. Não sei se do susto do estouro ou da pressa do sol, a luz na cara, aquela confusão de Jenifer gritando “corre, é o despejo, corre, é o despejo” e juntando os documento e os troço dos pirraia pra fugir do acampamento. Quando a gente saiu do barraco, era home, mulher e criança pra todo lado, tudo desorientado, uma agonia. A polícia ainda atirava. Os gatilho gania dez, vinte, trinta vez contra sei lá o que, Doutor. Sim, porque eu juro ao senhor, eu não atirava, Jenifer não atirava, os menino não atirava, merda, ninguém atirava, Doutor, a gente mal respirava. É, os polícia botaram fogo nas lona. Foi aí que eu ouvi, lá do fundo da fumaça, os grito de Dona Inácia procurando pela neta. A menina tinha completado três ano na véspera, Doutor. Jenifer até fez um bolinho de laranja pra cantar os parabéns. Agora, Dona Inácia gritava tanto, tão lá do escuro, que meu caçula parou de chorar e, parece mentira, Doutor, mas eu vi aquele polícia se desesperar e perguntar a ela o que tava acontecendo. A mulher dizia o nome da menina e ele tentava entender, ela gritava, ele não entendia, até que outro policial puxou Dona Inácia, calou a boca dela com uma chave de braço, levantou o revólver e atirou para cima uma última vez, “tá todo mundo preso, tá todo mundo preso”, ordenando que nós se ajoelhasse no campinho de futebol e rezasse, “bando de filho da puta”, pelo futuro da nação. Eu me ajoelhei. Jenifer segurou os documento e o pequeno no colo e também se ajoelhou. Meu mais velho não quis se abaixar, perguntou que porra de reza era aquela, levou um cascudo da mãe, “fica quieto, menino, fica quieto”, e terminou se ajoelhando. Só que Dona Inácia mesmo não conseguiu se ajoelhar. A velha se debateu. Brigou para sair do braço do policial. Lutou, Doutor, mordeu a farda do home como bicho, até que levou uns tapa, perdeu as força e cedeu. Presa no braço do polícia, Dona Inácia dizia baixo o nome da neta. Dizia e olhava para o incêndio como se pedisse ao fogo uma resposta, Doutor, como se do calor viesse uma palavra, um socorro, um jeito de saber da menina que ela deixou no berço enquanto estendia as fraldinhas no varal.

Edição: Monyse Ravena