Minas Gerais

Direito

“A Justiça não é cega, ela escolhe o lado que quer ver”

Abertura de encontro nacional de advogados populares, em BH, será aberta ao público

Belo Horizonte (MG) |
Michelle Cristina Farias e Maria do Rosário de Oliveira Carneira estão na organização do encontro, que acontece de 6 a 10 de setembro
Michelle Cristina Farias e Maria do Rosário de Oliveira Carneira estão na organização do encontro, que acontece de 6 a 10 de setembro - Arquivo Pessoal

A Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), criada em 1995 para articular pessoas que fazem assessoria jurídica para causas populares, realiza em Belo Horizonte seu 22º Encontro Nacional, de 6 a 10 de setembro. Com o tema “Nenhum direito a menos”, cerca de 120 advogados e estudantes de direito, de todas as regiões do Brasil, vão trocar experiências e articular a atuação em tempos de golpe. A abertura será no dia 6, às 18h, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e será aberta ao público. Segundo Michelle Cristina Farias e Maria do Rosário de Oliveira Carneira, que fazem parte da organização do encontro, o objetivo é ocupar o espaço com pautas populares e pressionar pela criação de uma comissão específica para o tema. Confira entrevista que elas concederam ao Brasil de Fato MG.

Brasil de Fato: O que é a Renap, qual sua história e objetivos?

Rosário: A Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) foi formada em 1995, a partir de uma articulação de advogados que atuavam junto às lutas do campo e perceberam que sofriam uma série de perseguições comuns. A partir daí, vários coletivos de advogados populares vão se articulando no Brasil.

Michelle: A Renap reúne um conjunto de advogados em todo o país, apesar de não ter uma formalização jurídica. Todos os anos é realizado um encontro nacional, com rodízio entre os estados. Este ano, Minas Gerais sedia o encontro. É muito importante Minas sediar esse encontro, inclusive para rememorar e discutir os impactos do crime das mineradoras Vale, Samarco e BHP na bacia do Rio Doce. Queremos pautar esse tema no encontro, os atingidos da mineração.

Por que fazer a abertura na OAB?

Rosário: A escolha de ocupar a OAB diz muito. A advocacia popular sente que não existe um reconhecimento do trabalho da forma como se deseja. Existe um apoio de algumas comissões, como a de Direitos Humanos, mas a Ordem não pensa a fundo essa temática. Queremos fazer um requerimento para que haja uma comissão de advocacia popular. Consideramos que já é hora de a OAB reconhecer que temos uma forma de fazer advocacia há mais de 20 anos no Brasil que é diferente da advocacia tradicional, de se construir o direito. Essa é a mensagem que a gente quer passar na noite de abertura.

Michelle: A OAB representa um espaço hegemônico, masculino e branco. As comissões concentram homens na presidência, mulheres brancas. E a gente busca desconstruir isso. Temos advogadas e advogados negros, homossexuais. E a gente quer que a OAB se abra para essa diversidade. A advocacia popular traz isso.

Um dos atores do golpe por que passa o Brasil é o Judiciário. Como é fazer advocacia popular nesse contexto?

Michelle: Sempre foi difícil fazer advocacia popular, mas agora se torna ainda mais. Sempre fomos criminalizados. E com essa onda de retrocessos, com a perda de direitos, o advogado popular acaba sendo tolhido nas suas prerrogativas. Quando somos chamados em processos de reintegração de posse, por exemplo, há vários embates com a Polícia, que muitas vezes não entende que as pessoas têm o direito de defesa. É preciso mostrar o tempo todo para as instituições que é direito das pessoas terem um advogado.

Rosário: É importante lembrar que a própria OAB legitimou o impeachment da presidenta Dilma. O sistema de Justiça tem se mostrado muito seletivo, escolhe um lado. A Justiça não é cega, ela escolhe um lado que quer ver. Ela está quase sempre a serviço do Estado, dos interesses dos detentores de capital e de poder. E a maioria fica à margem mesmo. Quem escolhe fazer advocacia para quem está à margem, para as vítimas desse sistema, também é vítima da criminalização e é colocado para escanteio no sistema de Justiça. Não é à toa que temos tantas dificuldades com as ações, até petições que misteriosamente desaparecem. São muitas decisões que se tomam sem escutar as vítimas, os advogados populares. O direito o tempo todo legitima os donos do poder e do capital. A advocacia popular é uma disputa do direito imposto, para que ele sirva também às pessoas excluídas do sistema.

Esse golpe está atacando a ideia de um Estado de direito, de direito de defesa, de julgamento, etc. Vocês avaliam que está sendo atacada a ideia do direito como conhecemos ou apenas está ficando mais clara uma situação que já ocorria?

Michelle: O governo golpista que está instalado no país se articula em várias esferas. A gente diz que é um golpe jurídico, parlamentar e midiático. E o Judiciário é uma caixa preta no Brasil, não conseguimos saber o que acontece ali. Não existe voto direto, e eles se organizam conforme seus próprios interesses. Está em curso uma retirada dos direitos básicos. E o Judiciário é a cabeça disso. Eles querem um país de retrocesso, em que as pessoas não tenham direitos, não tenham acesso à educação, a alimentos. A conquista de alguns desses direitos para eles foi um desaforo. A ideia deles é extirpar qualquer direito dos trabalhadores. O que me deixa mais chocada é que eles continuam fazendo isso e nós não fazemos uma revolução para tirar esses caras do governo. Não é possível um país que teve vários ganhos nos últimos anos voltar a esse nível de situação.

Rosário: Importante também situar o golpe no contexto internacional. O capitalismo está na sua fase mais severa. Não importa a popularidade, não importa se o povo está gostando ou não. As questões são decididas no governo independente da vontade popular. Quem manda é o capital financeiro internacional. A questão do povo, do poder ser devolvido ao povo, é fundamental. É importante reforçar inclusive a desobediência civil. Existem decisões que não podem ser respeitadas. Qualquer articulação hoje precisa voltar às bases. É preciso fazer trabalho de base, formação jurídica, conscientização, para fazermos o motor funcionar de novo, voltar para as ruas com força e ver quais as estratégias que podem dar certo. Porque não dá mais para usar as mesmas estratégias de 20 anos atrás. Não é nova essa situação, ela só foi escancarada de vez. Está tudo muito claro. As pessoas estão percebendo como funciona o coração do Judiciário, do Legislativo, do Executivo. Pensar em como articular isso também é um desafio da Renap.

Edição: Frederico Santana