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Coluna

Morrer de trabalhar, trabalhar até morrer

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"Chegar aos 65 anos e contribuir ininterruptamente por 40 anos para estar apto à aposentadoria integral é quase uma impossibilidade"
"Chegar aos 65 anos e contribuir ininterruptamente por 40 anos para estar apto à aposentadoria integral é quase uma impossibilidade" - Rodrigo Andrade / Pixabay
A Previdência não é deficitária e os trabalhadores não se entregaram

A questão do trabalho no Brasil é duplamente perversa. O brasileiro trabalha muito, em condições adversas, com poucas garantias legais, salários aviltados, autoritarismo sistêmico e ausência de reconhecimento. Morre de trabalhar.

Além disso, está na mira da retirada de direitos ainda bastante restritos de aposentadoria, com alta carga de contribuição, tempo alargado de labuta e recebimento de valores, ao final de décadas, bastante inferior ao que tinha direito quando estava na ativa. Vai trabalhar até morrer.

A perspectiva da reforma da Previdência é a concretização desse duplo vínculo antitrabalhador. Somada à contrarreforma trabalhista e à terceirização radical, aponta para o desprestígio do valor do trabalho como realização humana. A economia brasileira, em sua matriz arcaica, detesta o trabalho como criador de humanidade e o trabalhador como sujeito histórico transformador.

O governo vem anunciando, em sua luta inglória, que está flexibilizando o projeto original da reforma, não pelo fato de ele ser ruim, mas para angariar simpatia de indecisos. Como o caso do aceno às viúvas de policiais vítimas de violência. Em vez de reconhecer a justiça do pagamento integral para todos os trabalhadores, faz demagogia mórbida para atrair a numerosa bancada da bala.

Na verdade, esta é mais uma forma de mostrar o caráter regressivo do governo não eleito. Como a violência mobiliza a sociedade em momento de grande instabilidade, desvia-se da necessidade de enfrentar as causas sistêmicas da criminalidade, e mesmo políticas consequentes de enfrentamento do tema, destacando consequências humanas como se fossem causas. Trata-se como drama pessoal o que é um desvio de estrutura.

Apesar desses desvios, o núcleo duro do projeto de reforma não mudou. É uma soma de duas iniquidades: a exigência de idade mínima além do padrão demográfico de grande parte do país (sobretudo das regiões mais pobres), à qual se acrescenta a necessidade de tempo de contribuição muito além da realidade nacional do trabalho altamente precarizado.

Chegar aos 65 anos e contribuir ininterruptamente por 40 anos para estar apto à aposentadoria integral é quase uma impossibilidade. Há limitações em termos de expectativa de vida real em diversos contextos da realidade brasileira, da informalidade quase estrutural do mercado e da carência de oportunidades laborais para quem passou dos 40.

Esta última caraterística precisa ser considerada com atenção. Uma eventual tentativa de retificar uma trajetória marcada pelo desemprego em algum momento da vida é miragem no mundo da descartabilidade humana. A mão de obra não qualificada vale por sua força muscular, que se extingue. Os apelos do mito da meritocracia são apenas instrumentos de privilégios, que excluem.

Não se deve desprezar a capacidade de reação da sociedade brasileira, que vem condenando a reforma da previdência. O que talvez esteja impactando o calendário de votação sempre adiado. No entanto, a onda favorável tem seus trunfos. A começar pela compra aberta de parlamentares com a moeda das emendas e cargos, seguida da propaganda oficial cotada a peso de ouro. Sem falar no périplo canhestro do presidente Temer por programas populares que abriram seu flanco à venalidade ao vivo.

A isso se soma uma das mais vergonhosas ações para nomeação de um ministro já ocorrida na história do país, com o caso da deputada-youtuber Cristiane Brasil, que tem oferecido em holocausto sua dignidade em troca de votos do PTB à base do governo. Dos dois lados, a desonra campeia: de quem se vende a qualquer preço e do que aceita a mercadoria em qualquer condição.

Fechando o circuito de indignidade, o papel da imprensa corporativa chegou ao ápice da partidarização na defesa da PEC 287. Por meio de uma campanha sustentada pela opinião travestida de informação, jornalistas se mostraram dispostos a barganhar sua carreira por protagonismo vicário. Vozes do dono que se escutam a si mesmos como donos da voz. O mais grave é que parecem acreditar no que dizem. Em termos psicopatológicos, há uma transitividade da despersonalização para a esquizofrenia. Deixaram de se achar para ter certeza.

O movimento popular, os sindicatos, as frentes de oposição precisam capitalizar a conjuntura, com o adiamento da votação para o fim do mês, para aprofundar a mobilização e radicalizar nas atitudes. O aparente titubeio pode parecer prenúncio de derrota, mas talvez signifique recuo tático da reação para arregimentar forças e recursos.

Assim como o governo, como lugar-tenente do mercado financeiro, se organiza para a carga final, a sociedade brasileira comprometida com a democracia precisa aprofundar sua resistência. Todas as ações são importantes, sobretudo aquelas capazes de multiplicar a solidariedade social e ampliar a força de contestação.

Derrubar a reforma da Previdência é um sinal importante. Pode se somar à resposta que vem sendo dada nas pesquisas eleitorais com a afirmação da liderança de Lula, o que aponta o limite da mentira sobre a consciência política do brasileiro. Há verdades poderosas que precisam ocupar o espaço da realidade política. A Previdência não é deficitária e os trabalhadores não se entregaram.

Ao rejeitar a sina de morrer de trabalhar e trabalhar até morrer, a classe trabalhadora fica com a vida. E toda a luta que viver significa.

Edição: Joana Tavares