Saúde Pública

Empresários não querem o fim do SUS, querem um SUS conveniente aos seus interesses

José Sestelo, vice-presidente da Abrasco, não vê ineditismo na criação de um novo plano proposto pela Febraplan

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“Todo sistema tem duas dimensões, pública e privada, e há uma mão dupla aí. Os empresários agem politicamente"
“Todo sistema tem duas dimensões, pública e privada, e há uma mão dupla aí. Os empresários agem politicamente" - André Antunes - EPSJV/Fiocruz

‘A ousadia de propor um Novo Sistema de Saúde’. Essa foi a convocatória para um evento promovido pela Febraplan, a Federação Brasileira de Planos de Saúde, que circulou intensamente por meio das redes sociais no início desta semana. E que causou um rebuliço entre as entidades do Movimento Sanitário Brasileiro. Não sem razão. Em meio a um cenário de desmonte das políticas sociais como um todo, e às políticas de saúde especificamente, a proposta de construção de um “Novo Sistema Nacional de Saúde”, ainda mais partindo de uma entidade representativa do setor empresarial, foi vista como um ataque direto ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Acontece que a proposta não é novidade. Quem diz isso é José Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Nessa entrevista, ele explica por que ficou surpreso com a reação suscitada pelo evento da Febraplan, entidade recém-fundada, cujas propostas não trazem nada de novo em relação à agenda que as entidades empresariais da saúde vêm defendendo e promovendo desde pelo menos 2013. Esse foi o ano de publicação do chamado ‘Livro Branco da Saúde’, encomendado pela Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANAHP) a uma empresa de consultoria espanhola para propor mudanças no sistema de saúde brasileiro. Mudanças que, segundo ele, tenderiam a aproximar o sistema de saúde brasileiro ao dos Estados Unidos, onde o sistema público só atende aos muito pobres e aos idosos, e onde o gasto em saúde em relação ao PIB é o maior do mundo, chegando a 18%.

Nesta entrevista ao jornalista André Antunes da Escola Politécnica Joaquim Venâncio/Fiocruz, Sestelo defende que o Movimento Sanitário precisa se apropriar das propostas que têm sido defendidas pelos empresários da saúde, até para que consiga pautar sua ação política na defesa dos princípios que regem o SUS.

Gostaria que você falasse sobre a entidade que organizou o evento dessa semana, a Febraplan. A quem ela representa? Qual foi o objetivo dela com o evento?
A Febraplan é uma associação nova, fundada há pouco tempo. Se você entrar no site dela vai ver que ele tem muito pouco conteúdo atualmente, dá impressão que é um site fantasma. Seu presidente chama-se Pedro de Assis, que é o dono de uma empresa de planos de saúde de médio porte com sede em Joinville, em Santa Catarina, que é a Agemed. Essa empresa surgiu inicialmente aninhada da Tubos e Conexões Tigre, também de Joinville. A Agemed surgiu inicialmente como autogestão, ou seja, privativa para os funcionários da Tigre, e depois se tornou uma empresa que vende planos de saúde para a população em geral. A Agemed então iniciou um processo de expansão comercial das suas atividades e a nossa interpretação é que ela em algum momento encontrou dificuldades de expansão em função da concorrência com outras empresas, como por exemplo, a Hapvida, que tem sede no Ceará e está se expandindo muito. A Hapvida está prestes a fazer uma oferta pública de ações em Bolsa. É uma empresa que tem muita influência no governo, na Abramge [Associação Brasileira de Planos de Saúde], nas associações empresariais. Então, a Agemed e o Pedro de Assis partiram para uma estratégia de cavar o seu próprio espaço através da constituição dessa nova associação, que é inexpressiva. Ela não tem uma representatividade muito grande no meio empresarial, mas pretende ter. E esse evento do dia 10 na verdade é um exemplo dessa estratégia de marketing, de promoção, de expectativa ou perspectiva de crescimento da Agemed e da Febraplan, e que acabou tendo a meu ver uma repercussão muito maior do que deveria, dado o seu conteúdo e os seus participantes.

Quem foram os participantes?
Eu não assisti, não participei do evento, nem acompanhei depois. Mas o que eu vi foi o cartaz anunciando. O que tinha lá? O Alceni Guerra, que é ex-ministro da Saúde do governo Collor. Na minha opinião, um dos piores ministros da Saúde que o país já teve, mas uma figura conhecidíssima no meio empresarial e entre os gestores de saúde, em geral. Além dele, representantes da Fenasaúde e da Confederação Nacional de Saúde, que também são personagens, agentes políticos empresariais conhecidos, que se dispuseram a participar junto desse evento promovido pela Febraplan. Fora isso, o Norival [Silva], que é uma pessoa contratada da Febraplan, paga para isso. Então, falou o que as pessoas que o contrataram gostariam que fosse falado. Não há nenhuma novidade no conteúdo também.

O que seria essa pauta do Novo Sistema Nacional de Saúde?
Isso também não é novidade. O que me espanta é que entre nós, sanitaristas, gestores, pessoas que trabalham, pesquisam políticas de saúde, isso seja encarado como uma novidade . Não é. Essa pauta empresarial vem sendo veiculada publicamente há vários anos. Acho que um dos principais instrumentos de divulgação disso foi o chamado ‘Livro Branco da Saúde’, que foi publicado na época das eleições majoritárias, em 2013. Esse material foi elaborado por uma empresa de consultoria chamada Antares Consulting, sediada na Espanha, que foi contratada pela ANAHP, que é a Associação Nacional de Hospitais Privados. Na verdade a expertise dessa empresa é consultoria de gestão de hospitais e pequenos sistemas de saúde. Entretanto, ela se arvorou a fazer uma prescrição, uma proposta, para um sistema de saúde de um país como o Brasil, de 200 milhões de habitantes. Algo completamente fora da capacidade cognitiva de uma empresa como essa. Mas foi um trabalho encomendado pela ANAHP. A empresa recebeu e fez esse trabalho, que foi apresentado como se fosse algo com conteúdo acadêmico. Há um livro que seriam as bases teóricas e outro como um caderno conceitual. Na minha opinião, um trabalho sem nenhuma substância. Mas isso foi veiculado, distribuído entre os diversos candidatos, não só a Dilma ou os candidatos à presidência, mas também candidatos a governador e outros cargos majoritários. Então, esse conteúdo já estava ali, e depois continuou sendo desdobrado. Teve a Coalizão Saúde, o Colégio Brasileiro de Executivos da Saúde, com variações sobre o mesmo tema. Existe uma estratégia retórica de se utilizar esse termo – Sistema Nacional de Saúde – não diria que em oposição ao SUS, mas quase como uma ressignificação para o que a gente chama de SUS. Porque os empresários não querem a extinção do SUS, eles querem o SUS que seja conveniente aos seus interesses, como de fato tem sido. Mas eles querem ainda mais.

Por exemplo?
Essencialmente é tornar o SUS um grande resseguro, ou seja, tudo aquilo que não for comercialmente interessante para os empresários teria algum tipo de cobertura financiada pelo orçamento público. Os casos típicos são as condições crônicas, terapia renal substitutiva, transtornos de comportamento, enfim, condições em que o usuário recorre ao sistema de maneira frequente, em que ele não vai se curar, vai viver com aquilo. Essa é a visão. Aí tem outros aspectos que se relacionam, por exemplo, com a gestão de sistemas. Hoje em dia os esquemas financeiros de empresas ditas não lucrativas têm se expandido na área de gestão, tanto de microgestão, de unidades assistenciais, como de redes municipais inteiras. Em Uberlândia agora está acontecendo isso. E em outras cidades. São empresas que em tese são não lucrativas, mas esses mecanismos entram por contratos e depois têm o seus termos aditivos que vão acrescentando elementos em cima daquilo que foi contratado inicialmente e isso se torna uma bola de neve praticamente sem controle.

Recebemos um relato de uma pessoa que participou do evento que falou que a apresentação se resumiu a queixas das entidades representantes do setor sobre o “papel regulador estatizante” da ANS e a defesa do fortalecimento do Conselho Nacional de Saúde Suplementar (CONSU). Alceni Guerra propôs como meta para o ano de 2038 uma cobertura de 50% da população por planos privados que, segundo ele, reduziria o preço dos planos e faria com que boa parte da população que utiliza o SUS migrasse para eles. Assim, sobrariam mais recursos para os usuários do SUS.

Alguma novidade nessa pauta, na sua visão?
Essa pauta está colocada já há bastante tempo. Obviamente que agora as condições conjunturais, políticas, institucionais, são favoráveis à pauta empresarial, mas não que ela seja uma novidade. Espanta que o pessoal esteja tão assustado com isso. Isso vem transcorrendo já há bastante tempo. Agora, existe um argumento que você mencionou aí, que eu acho que merece ser analisado com mais detalhes. E esse argumento é uma panaceia que é apresentada pelos empresários há muitos anos e também em parte foi incorporado pelos que defendem o sistema público, que é de dizer que quanto mais pessoas têm planos de saúde melhor para o SUS, porque alivia as contas do SUS. E nós consideramos que esse é um argumento falacioso. Inclusive historicamente sabemos que ele foi construído no seio da Abramge, na década de 1970, quando a Abramge ainda era algo como a Febraplan é hoje, uma associação que lutava para se legitimar, para ser reconhecida, para ter espaço institucional. Então esse foi um dos primeiros argumentos construídos para convencer as autoridades da época de que era vantajoso do ponto de vista orçamentário abrir espaço para essas práticas de intermediação comercial da assistência, porque isso iria aliviar o orçamento público. Ora, o que acontece de fato? É um raciocínio óbvio. A intermediação em geral representa um aumento do custo de transação do sistema. Você introduz uma transação comercial, ou várias, a mais, no custo geral. Seguindo esse ritmo, com você aumentando a quantidade de transações, aumentando os níveis de intermediação, o que vai ocorrer? Algo semelhante ao que acontece atualmente nos Estados Unidos, onde o gasto em saúde como porcentagem do PIB foge à média mundial: eles estão com 18%, e tendendo a 20% do PIB de gastos em saúde, quando a média mundial gira em torno de 10%. Sem que com isso eles tenham uma condição sanitária superior. Ou seja, países de mesmo nível de renda, com gasto proporcional menor, têm condição sanitária superior a dos Estados Unidos. Então, qual é o risco que nós corremos aqui se formos nessa balada? Nós vamos ter no Brasil um aumento do gasto proporcional em saúde em relação ao PIB, ou seja, vamos aumentar essa despesa, o sistema vai ficar mais caro, e vai ficar mais excludente, mais regressivo, vai excluir as pessoas que não podem pagar e concentrar os serviços naqueles que podem pagar, tornando-se mais injusto ainda do que é. Essa é a visão que eu tenho em termos estruturais. E as pessoas estão falando isso como se fosse algo óbvio. Não é isso. Quanto mais pessoas têm planos de saúde, pior para quem não tem, inclusive porque quem tem é beneficiado com renúncia fiscal. Mas não só por isso, e também porque aumenta os custos gerais de transação do sistema, e resulta no final que o sistema fica mais caro sem ser mais efetivo.

Quais os principais atores políticos de promoção dessa agenda empresarial hoje?
O que eu percebo é que há cada vez mais – e é como o próprio Pedro de Assis e a Febraplan chamam – um sistema multimodal. Eles estão querendo fazer uma discussão que envolva diversos setores, os prestadores hospitalares, os intermediadores que são as empresas de planos e seguros de saúde, os fabricantes. Enfim, eles querem uma discussão em conjunto com toda essa cadeia produtiva do setor. Mas é uma discussão em conjunto sob a perspectiva de quem quer auferir lucro. Então isso, para mim, parece muito mais uma articulação na tendência de uma cartelização, do que na tendência de fazer prevalecer a lógica do interesse público, que é inclusive o que constitucionalmente deveria prevalecer no caso da assistência à saúde.

Eu vejo que há uma pulverização. Há também conflitos, obviamente, entre os agentes do campo empresarial, como agora mesmo essa história da Agemed com a Hapvida, essas disputas. Existem disputas internas, não há um bloco único. Mas há pontos de convergência. Na prática, o que se pretende é que o dinheiro que circula na saúde transite via transações comerciais e que eles possam auferir lucro com isso. Essa é uma questão que eu acho que é comum a todos.

Outra coisa que eu acho que acaba também unindo, criando laços entre diversos agentes econômicos do campo empresarial, é a questão financeira. Porque a gente não pode mais enxergá-las como empresas isoladas. Normalmente elas estão ligadas a grupos econômicos, que são multissetoriais, inclusive fora do setor Saúde, e esses grupos têm estratégias concatenadas. Às vezes uma determinada faceta do grupo pode dar prejuízo, mas para que outra dê lucro. E tem também o lucro que é não operacional, o lucro financeiro, que faz parte também do portfólio desses grupos econômicos cada vez mais. Então, as próprias instituições reguladoras estão ainda com a cabeça antes dos anos 2000, quando essas empresas ainda não estavam na lógica completamente financeirizada. Mas agora a realidade é outra. Você não pode falar de empresa de plano de saúde como se fosse algo isolado de um grupo econômico maior. A Amil, por exemplo, a Intermédica, essas que estão fazendo oferta pública de ação em Bolsa atualmente, a própria Hapvida, são grupos que tendem a se financeirizar e vão auferir lucro não-operacional. Então, a atividade-fim dessas empresas seria intermediação assistencial, mas elas podem ter lucro fora dessa atividade-fim, talvez até superior ao lucro que têm com a intermediação assistencial. Isso precisa ser levado em conta, porque explica, por exemplo, que quando ocorreu uma diminuição na massa de clientes das empresas de planos de saúde, como ocorreu recentemente, elas continuaram lucrativas e até aumentaram as suas margens. É assim porque a base operacional muitas vezes é um instrumento necessário, mas não é o único a gerar lucro para esses grupos. É complexa a situação do ponto de vista econômico, e isso dificulta a ação regulatória do Estado.

Por que esse evento ganhou tanta projeção, na sua visão?
Eu diria que é um fenômeno mais da esfera das ciências sociais, um fenômeno sociológico que a gente está vivendo hoje das fake news: noticias, boatos, hipérboles, exageros que circulam como se fosse a pura expressão da verdade. E isso se reproduz de uma forma incontrolável, você não sabe onde vai parar. As pessoas estão se mobilizando em torno de coisas que, quando efetivamente você “espreme”, não consegue ver porque que isso ganhou essa dimensão. Eu estou realmente impressionado porque até hoje eu vejo repercussão disso nos grupos, fora inclusive da Saúde Coletiva, dos sanitaristas. Hoje mesmo recebi um convite da Defensoria Pública do estado da Bahia para uma audiência pública pra tratar sobre isso.

Sobre esse evento especificamente?
Sobre o fim do SUS, que está sendo proposto nesse evento. Então, [esse fenômeno das fake news] é algo que extrapola qualquer limite do que seria razoável. É um fenômeno da psicologia social. Os sociólogos, os psicólogos poderiam se debruçar sobre isso. Eu lamento porque eu acho que, do ponto de vista acadêmico, nós realmente precisamos nos esforçar mais para reagir de uma forma mais ponderada. Ou melhor, reagir não, agir. Agir e poder entender o que está acontecendo, e não ser movido por esses impulsos histriônicos, que acabam repercutindo no vazio. Fica um denuncismo, fica algo que não tem consequência prática e que, do meu ponto de vista, enfraquece o Movimento Sanitário, porque o desqualifica. Como se pode levar a sério isso? A Febraplan deve estar muito agradecida, porque um evento que não tinha a menor possibilidade de ter alguma repercussão virou um fenômeno de mídia. Fizemos o favor de dar à Febraplan um reconhecimento que ela de fato não merece.

É possível transformar isso em uma agenda de mobilização mais efetiva?
Acho que a gente pode se inspirar nas origens do campo da Saúde Coletiva, que se constitui em cima desse critério de que a prática política, a ação política, é instruída pela atividade acadêmica, pela pesquisa fundamentada, pelo conhecimento. O campo se constituiu na perspectiva de dar elementos para a ação política poder avançar, mas de uma forma consequente. A própria [Cecília] Donnangelo, que é uma mãe fundadora do campo da Saúde Coletiva, foi ao primeiro evento da Abramge, que foi o primeiro congresso que reuniu empresários, anda nos anos 1970. Ela esteve lá, estudou a ideologia empresarial. Não que isso tenha sido o tema central da obra dela, mas ela considerou isso. Então, hoje eu diria que se nós queremos pensar sobre o sistema de saúde, não podemos nos prender a uma visão institucionalista, estrita, como uma mão única assim das ações de governo para o sistema de saúde. Todo sistema tem essas duas dimensões, pública e privada, e há uma mão dupla aí. Os empresários agem politicamente. Qual é a novidade? Eles têm inclusive direito de fazer isso. E aqueles como nós, que defendemos um sistema público, universal, também precisamos e devemos agir politicamente, de uma forma concatenada, organizada, com conhecimento. Para não acontecer essa situação agora que realmente não ajuda. Ajudou aos empresários e não a nós. Acho que a gente precisa transformar um limão em uma limonada, e aproveitar essa repercussão para refletir sobre a maneira como estamos encarando a realidade, sobre em que medida estamos colocando as nossas expectativas ou desejos na frente do que é a realidade empírica. Acho que o nosso primeiro compromisso tem que ser esse. Aí a nossa ação política tem muito mais chance de sucesso:se ela tiver uma base de pesquisa, de reflexão.

Edição: Redação | Saúde Popular