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“Desigualdade tem relação com passado escravocrata", diz vencedor do Eisner

Quadrinista brasileiro ganha prêmio internacional com obra “Cumbe”, sobre a resistência negra

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Capa do quadrinho "Cumbe"
Capa do quadrinho "Cumbe" - Marcelo D`Salete
Quadrinista brasileiro ganha prêmio internacional com obra “Cumbe”, sobre a resistência negra

Paulistano da Zona Leste, Marcelo D`Salete é ilustrador, autor de histórias em quadrinhos e professor. Graduado em artes plásticas e mestre em história da arte, Marcelo é também, desde o último dia 20, vencedor do Eisner Awards 2018, prêmio estadunidense considerado o “Oscar dos quadrinhos”. 

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O prêmio é pela penúltima obra do autor, “Cumbe”, que conta histórias protagonizadas por negros escravizados. D`Salete conta que o interesse por discutir questões sociais começou ainda na infância: 

"Minha trajetória tem muito a ver com, de certo modo, a década de 80, com o surgimento do rap e do hip-hop em São Paulo. Embora fosse muito novo, acompanhava um pouco e percebia com muita curiosidade o interesse e a potência do rap em discutir questões sociais e raciais também. Tudo isso acho que acabou formando meu interesse para trazer essas discussões para o universo dos quadrinhos”. 

Foi também na juventude que Marcelo começou a se interessar por quadrinhos e a paixão acabou direcionando sua formação. As temáticas sociais sempre estiveram presentes em suas obras, mas foi depois de um curso sobre História do Brasil que começaram a surgir as ideias de “Cumbe”. Segundo ele, o Brasil possui uma extensa literatura sobre o tema da escravidão, mas com um porém: 

“Muitas vezes são textos que os meus colegas de infância e adolescência poucos deles conhecem, então eu via que era um tipo de literatura que muitas vezes está circunscrita em certo nicho acadêmico e intelectual, mas que não chega à outras pessoas e a outras áreas”, diz. 

Visão crítica

O desejo de trazer as histórias sobre a diáspora negra do período colonial para uma linguagem mais contemporânea, e levá-las a outros públicos, impulsionou a criação dos quadrinhos recentes do autor. 

A graphic novel “Cumbe” foi publicada no Brasil em 2014, pela editora Veneta, e com versão norte americana pela editora Fantagraphics, sob o nome Run for it: Stories of slaves who fought for their freedom. “Cumbe” ganha na categoria “melhor edição americana de material estrangeiro”. Seu mais recente trabalho é “Angola Janga”, sobre o quilombo dos Palmares.

Histórias de resistência também estão presentes no selo independente Zapata Edições, do roteirista Daniel Esteves. Formado em História, Daniel atua na área dos quadrinhos há 20 anos e procurou fazer autopublicações por conta da liberdade de criação. Apesar de não tão intensas no início, as visões críticas sempre tiveram lugar em suas publicações. 

"O selo tenta refletir esse tipo de coisa, lógico que em alguns trabalhos isso vai ficar mais gritante e em outros menos, mas está ali presente. Varia um pouco a intensidade disso, mas questões politicas estão ai sempre presentes”. 

O roteirista conta que o tema ficou mais evidente no selo a partir de 2013, com o primeiro volume da obra “São Paulo dos Mortos”. O caso Pinheirinho, desapropriação de um terreno em São José dos Campos, onde milhares de famílias foram retiradas do local com muita violência, foi o motivador da existência do livro. 

Outro título de destaque do selo é "Por Mais um Dia com Zapata", obra que mescla ficção com realismo mágico, tendo a Revolução Mexicana e a Guerra de Canudos como pano de fundo. 

Arte e literatura

Em relação ao prêmio do colega, Daniel afirma que tem um grande significado para os rumos dos quadrinhos brasileiros.

“Não é de hoje que os brasileiros trabalham com o mercado norte americano, porém é muito recente o fenômeno dos brasileiros conseguirem levar as suas histórias para o mercado norte-americano”, avalia. 

Segundo D`Salete, o cenário de produção no Brasil está em um bom momento, mas ainda falta politização. 

“A nossa história, na história do Brasil, é uma história que acontece dentro do sistema da escravidão. Até hoje não aboliu [a escravidão] de fato, totalmente, essas diferenças criadas, elaboradas e sustentadas durante muito tempo na época da abolição. É extremamente importante a gente conectar que esse passado, que está diretamente ligado à matança desenfreada de jovens negros na periferia e também à ausência, muitas vezes, de pessoas negras na politica ou acessando certos cargos em empresas ou em profissões”. 

O vencedor do prêmio Eisner ainda ressalta que para romper com este ciclo é importante ações intersetoriais, mas principalmente na arte e na literatura. 

As obras “Cumbe”, de Marcelo D`Salete, e “Por Mais um Dia com Zapata”, de Daniel Esteves, foram realizadas por meio de edital do Programa de Ação Cultural (Proac), do Estado de São Paulo. 

Edição: Juca Guimarães