60 ANOS

Entrevista | Quais os aspectos históricos contribuíram para a resistência de Cuba?

Professor e ex-diplomata cubano Ernesto Wong fala com Brasil de Fato sobre a conjuntura nos 60 anos da Revolução Cubana

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
"Cuba é e continuará sendo um país focado no socialismo, produto de construção histórica do país", afirma ex-diplomata cubano
"Cuba é e continuará sendo um país focado no socialismo, produto de construção histórica do país", afirma ex-diplomata cubano - Arte: Gabriela Lucena

“Nem mesmo o mais sonhador daqueles que acompanharam Fidel em um evento como esse, de 1º de janeiro de 1959, poderia imaginar que hoje estaríamos aqui”, disse certa vez o ex-presidente de Cuba, Raúl Castro, atual primeiro-secretário do Partido Comunista. Sessenta anos depois da queda do ditador Fulgencio Batista, a Revolução Cubana ainda é um processo em construção.

Um dos cubanos comuns que fez e faz parte dessa história como milhares de outros cidadãos é o ex-diplomata Ernesto Wong. Ele tinha 11 anos quando a luta do Exército Rebelde triunfou e conta que sua família participou ativamente de todo o processo de estruturação da Revolução Cubana e das mudanças que viriam nos anos seguintes.

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Wong é filho de um descente de chinês, um pequeno comerciante que tinha uma bodega em Havana, mas que estava falida em 1959 devido à profunda crise que atravessava o país. “Viram no meu pai um ponto de apoio como comerciante. Nos primeiros anos da revolução, ele recebeu a tarefa de fazer a distribuição de leite em toda Havana”, conta o cubano.

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Aos 12 anos, Wong foi ajudar na missão de alfabetização na zona rural. Alfabetizou um camponês e a esposa. Também ajudou na colheita de café, na safra de 1963. Estudou educação física e foi um dos fundadores de muitas das escolas de natação de todo o país. “Era um projeto massivo, em cada província tinha uma escola de natação”, explica.

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Depois disso, estudou ciência política e diplomacia. Ajudou a fundar várias instituições educativas em Cuba e fez carreira diplomática.

Na juventude, Ernesto Wong fez parte de uma equipe de basquete em que jogava também o comandante Fidel Castro. “Jogamos basquete com Fidel Castro durante todo o ano de 1985, à noite, para que Fidel pudesse se exercitar. No jogo, eu sempre passava a bola para lançar à cesta, pois ele era muito alto e tinha a posição de pivô”, lembra o diplomata. E conta uma anedota: “Teve uma vez que fui tentar fazer uma cesta, tentei saltar entre os jogadores superaltos, mas falhei. Então Fidel me deu uma aula de guerrilha, explicando que devia ficar o tempo todo na cola do inimigo. Uma aula que nunca vou esquecer”, conta.

Hoje radicado na Venezuela e professor da Universidade Militar Bolivariana da Venezuela, Wong recebeu o Brasil de Fato para uma entrevista em que relembra os fatos históricos que marcaram 60 anos da Revolução Cubana.

Brasil de Fato: A Revolução Cubana completou 60 anos. O que foi determinante para que Cuba pudesse resistir por tanto tempo, apesar todas as investidas dos Estados Unidos contra esse modelo político e econômico?

Ernesto Wong: A Revolução Cubana, desde o início, teve uma liderança que conquistou a população ao apresentar demandas e eixos políticos que permitiram conquistar a simpatia das pessoas. Isso foi fundamental para derrotar em pouco tempo a ditadura de Fulgencio Batista. Porém, essa liderança estava acompanhada de ideias e ideologia. Isso foi permitindo a incorporação, cada vez maior, do povo que apoiou a revolução, primeiro para conquistá-la e depois para sustentá-la.

Isso requer unidade, que foi sendo alcançada através de objetivos claros. Por um lado, estava o líder, Fidel Castro, e, por outro, as massas, que precisavam ser bem guiadas. As colunas, as frentes e os comandos que atuaram na guerra de guerrilha depois se converteram em organizações de massa de defesa que foram criadas para enfrentar o imperialismo e defender as transformações que começaram a serem implantadas.

Quais foram as principais transformações, logo no início da Revolução Cubana?

O primeiro passo foi criar um sentimento nacional, nacionalizar as principais indústrias que estavam em poder dos Estados Unidos, como é o caso das indústrias elétrica, telefônica e açucareira. Para que pudessem ser convertidas em propriedade social, foi necessário ter apoio das massas.

Nesse tempo também, criou-se a Lei Fundamental da República, que teve papel de Constituição Revolucionária. Os meios de comunicação tinham que cumprir a lei, e aqueles que não cumpriam tiveram que ser fechados. Por outro lado, os partidos políticos que serviam de estrutura política para Batista foram embora do país.

Os Estados Unidos atuaram para bloquear os capitais dos empresários cubanos e, depois disso, os empresários não tiveram outra opção senão ir embora buscar seu dinheiro, em Miami. E a política externa dos EUA contribuiu para que não voltassem nunca. A economia cubana ficou desprotegida, mas nas mãos dos cubanos. Através da União Soviética e da China, encontrou-se respaldo para as primeiras transformações.

Depois do bloqueio econômico e político promovido pelos Estados Unidos, em 1960, qual foi o momento mais difícil para Cuba?

Os primeiros dois anos foram os mais difíceis, pois o perigo maior era de invasão militar, que se produziu com mercenários apoiados pelos Estados Unidos, como aconteceu na Praia Girón [em 1961, episódio conhecido no Brasil como invasão da Baía dos Porcos]. Mas [esses invasores] careciam da moral que tinham os cidadãos cubanos armados, a polícia nacional revolucionária inicial e o exército rebelde, que tinha dois anos de [experiência com] enfrentamento nas montanhas. A invasão da Praia Girón foi derrotada em 72 horas.

Entretanto, a parte mais complexa da resistência da revolução, que foi a econômica, esteve sempre apoiada pela União Soviética e, de alguma maneira, pela China, assim como pelos outros países socialistas, que nessa época eram nove.

Quais eram os nove países socialistas?

Tchecoslováquia, Polônia, Romênia, Hungria, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, República Democrática Alemã, Bulgária, Albânia e China, que nessa época estava se distanciando da União Soviética, porque Mao Tsé-Tung considerava que a maneira como Josef Stalin governava a Rússia a conduziria ao capitalismo.

Foi esse grupo de países que permitiu que se estimulasse muito a produção nacional de Cuba. Os intercâmbios, em vez de acontecerem com Estados Unidos, passaram a ser com os países socialistas. 

Cuba já tinha passado a etapa da sobrevivência, dos anos 60 e parte dos 70. A partir de 1976, com a nova Constituição, e também com a entrada de Cuba no Comecon [Conselho de Assistência Econômica Mútua], que era uma organização dos países socialistas, passaram a comprar os produtos produzidos por Cuba.

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Da Hungria vinham os motores de carros e os ônibus para o transporte público, por exemplo. Da Bulgária chegavam os alimentos em conserva, que eram intercambiados pelos produtos cubanos. Da Alemanha vinha toda a parte de informática e de inteligência artificial, por existirem alguns projetos comuns. A União Soviética fornecia armas e petróleo.

Unido a isso houve também uma brigada de apoio militar, conhecida como a Brigada Soviética, que foi muito discreta, mas que, para os Estados Unidos, significava que em qualquer invasão a Cuba o país teria de enfrentar também a União Soviética.

O senhor fez uma análise dos primeiros 20 anos da Revolução Cubana. Agora, gostaria de saber como os anos 90 anos influenciaram no cotidiano dos cubanos, durante o chamado período especial [com a dissolução da União Soviética e do Comecon].

O trabalho coletivo influenciou muito na atitude de como enfrentar as dificuldades.

Também tivemos que mudar alguns hábitos alimentares. Em Cuba, a gente quase não comia pizza ou macarrão, mas com o apoio da União Soviética, que fornecia farinha de trigo, fomos substituindo o consumo de proteína animal pelo trigo. [Nesse período,] passamos a comer muito peixe, como merluza, que era muito barato. Isso porque tivemos apoio para a aquisição de barcos pesqueiros. Cuba teve a melhor frota de barcos da América Latina, durante os anos 70 e 80, até o período especial [anos 90].

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação reconheceu que os cubanos tinham uma alimentação muito balanceada e aceitável até o período especial. Com o fim do fornecimento do petróleo, depois da queda da União Soviética, os barcos tiveram que parar, porque gastavam muito combustível. Com o fim da União Soviética, a única aliança com Cuba que permaneceu invariável foi a militar. Agora mais ainda.

A aliança militar entre Cuba e Rússia nunca se rompeu?

Nunca se rompeu. Além disso, depois da guerra de Angola [entre 1966 e 1989], quando Cuba ajudou a derrotar o exército sul-africano, que inclusive tinha armas nucleares, os cubanos também demonstraram seu poder combativo. Então os Estados Unidos também tinham que pensar duas vezes antes de invadir a Cuba, estando a apenas 90 milhas náuticas de distância [menos de 170 km].

O senhor acredita que o exército de Cuba teria a capacidade invadir o estado da Flórida, nos EUA?

Os pilotos cubanos foram os únicos capazes de sobrevoar o território estadunidense sem serem detectados.

Eu digo invadir no sentido militar. Teria essa capacidade?

De se defender sim, a todo custo. Se chegaram a Angola, que está a milhares de quilômetros, 90 milhas não é nada. Mas não é o propósito, pois a primeira tarefa sempre foi a de defender o território cubano. Foi isso que prevaleceu na tentativa de invasão a Cuba.

No entanto, o grande propósito dos EUA era derrotar a União Soviética. Por isso, nos anos 90, com o fim do bloco socialista soviético, os Estados Unidos esperavam que o comunismo cubano fosse acabar, mas isso não aconteceu.

O período especial coincide também com uma recomposição internacional entre Rússia e China, que firmam, em 1996, um novo acordo, conhecido como o Acordo de Cooperação de Xangai. Trata-se de uma nova aliança. A China volta a apoiar Cuba. Em seguida, Cuba começa a exportar serviços médicos e farmacêuticos.

Em 1998, triunfa a Revolução Bolivariana, na Venezuela. A partir de 2000 e 2001, o comandante Hugo Chávez decide fazer uma aliança com Cuba, e aí começou o intercâmbio onde Cuba passa a oferecer serviços médicos à Venezuela, que por sua vez vende petróleo a Cuba.

Gostaria de dar um salto histórico, para tratar de um tema mais atual. Cuba está preparando uma nova Constituição. Quais são as principais mudanças que estão por vir no curto prazo?

Cuba tem um alto índice educacional entre a população, com um corpo profissional preparado. Neste momento, desenvolvemos projetos internacionais de cooperação com mais de 60 países, tanto no campo médico quanto científico, agrícola e pecuário. Isso permite ao país diversificar os setores que poderão receber investimentos estrangeiros porque existem profissionais preparados para isso.

Já faz tempo também que Cuba vem desenvolvendo empresas mistas, de capital estrangeiro junto com o governo cubano, que permitem o desenvolvimento integral do país. Com a nova Constituição, isso será potencializado.

Com a nova Constituição, os países europeus podem melhorar a relação política com Cuba? O presidente da Espanha [Pedro Sánchez Pérez-Castejón] esteve na ilha recentemente e um jornal britânico noticiou que o príncipe Charles pretende visitá-la em 2019.

Hoje existe uma nova relação entre Cuba e os países da Europa. A nova política dos EUA e o distanciamento de seus aliados europeus, depois da eleição de Donald Trump, influenciaram nessa questão. Os países europeus suspenderam a norma contra Cuba e, ao suspender esse obstáculo, os governos têm mais liberdade para fazer negócios.

Como, na Europa, muitos presidentes têm vínculos econômicos com grupos empresariais de comércio, isso faz com que, nesse caso, haja muita influência dos empresários europeus. Muitas empresas que também não têm nenhum vínculo comercial com os EUA, então o bloqueio econômico não as afeta.

Agora, Cuba está construindo a Zona Econômica de Mariel, com muito investimentos estrangeiros. Essa é a maior zona econômica [de livre comércio] estrangeira próxima aos EUA. Também haverá empresas norte-americanas, como por exemplo, uma fabricante de tratores que já foi aprovada. Nesse aspecto, há certa competição com as empresas brasileiras. Temos que ver como vão agir os empresários brasileiros agora com o governo de Jair Bolsonaro. Mas o Brasil sempre terá espaço, porque contribuiu com a construção da Zona de Mariel [Zona Especial de Desenvolvimento Mariel].

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Cuba continuará sendo socialista? E o que realmente vai mudar em relação à nova Constituição?

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Cuba é e continuará sendo um país focado no socialismo, produto de construção histórica do país. A prioridade serão as empresas estatais e de capital misto com investimento estrangeiro. Está se desenhando um socialismo com características cubanas, como já acontece também com a China.

Edição: Aline Scátola