Pernambuco

Antimanicomial

Artigo | Por uma sociedade sem manicômios

Continuaremos levantando a bandeira de uma sociedade que convive com as diferenças

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Cena do filme Bicho de Sete Cabeças, com Rodrigo Santoro
Cena do filme Bicho de Sete Cabeças, com Rodrigo Santoro - Reprodução

A partir da década de 1970, no Brasil, o embrionário movimento de Luta Antimanicomial, alinhado ao movimento pela Redemocratização no país, começa a questionar o tratamento ofertado às pessoas com Transtorno Mental vigente à época, denunciando os maus tratos a que eram submetidas essas pessoas: hospitais superlotados, profissionais com condutas agressivas, excesso de medicação, falta de comida e higiene adequada, violação dos direitos humanos. Os hospitais psiquiátricos eram considerados depósitos de seres humanos indesejados. Os loucos, os bêbados, aqueles com condutas divergentes da maioria, as mulheres e homens que exerciam sua liberdade sexual, os que questionavam o sistema político. Não é à toa que durante a ditadura militar chegamos a 104.000 leitos psiquiátricos no país, para atender à demanda de silenciamento e exclusão dessas pessoas.
Após anos de lutas, em 2001, com a Lei Federal 10.216 o estado brasileiro vem fomentando políticas para extinguir os hospitais psiquiátricos e com eles a lógica manicomial. Avançamos muito, fechamos cerca de 80.000 leitos em 30 anos. Dos anos 2000 até hoje, abrimos diversos Centros de Atenção Psicossocial, e outros tantos serviços como Residências Terapêuticas, Unidades de Acolhimento, Leitos Integrais em Saúde Mental desenhando aquilo que em 2011 passamos a chamar de Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A era perversa dos hospitais psiquiátricos no Brasil parecia ter tido um fim, embora, no campo da Política de Álcool e outras Drogas, as Comunidades Terapêuticas, instituições em sua maioria de caráter religioso e comprovadamente locais de maus tratos físicos, morais e psicológicos, viessem ganhando força.
Após o golpe de 2016, representantes dos setores mais conservadores da sociedade ganharam força no cenário político e na Coordenação Nacional de Saúde Mental não seria diferente. Desde então, nossa Política, mundialmente reconhecida no campo da Saúde Mental, Álcool e outras Drogas passou a ser questionada, desvalorizada, subfinanciada, subvertida. Com a eleição de Bolsonaro para a presidência da República, esses setores mais conservadores ganharam legitimidade para mostrar sua face mais nefasta. No dia 04/02/19 recebemos, sem surpresa, mas com grande pesar a notícia da publicação da Nota Técnica 11/2019 do MS – Esclarecimentos sobre a Política Nacional de Saúde Mental. Já na introdução do documento, a coordenação geral de saúde mental, álcool e outras drogas deixa claro a reviravolta que pretende promover na RAPS, reinserindo Hospital Psiquiátrico como um ponto de atenção da Rede. A nota esclarece que os serviços não tem mais o caráter “substitutivo”, já que não se encoraja mais o fechamento destas instituições, ao contrário, estimula a ampliação de leitos em hospital psiquiátrico e comunidade terapêutica e aumenta o valor do financiamento. A ampliação de ambulatórios de Psiquiatria e Psicologia é outro ponto preocupante, ao invés da valorização de dispositivos diversos, dentro dos territórios, com equipes multidisciplinares que deem conta da integralidade e singularidade dos sujeitos através de uma clínica ampliada, temos uma lógica corporativista e biomédica num olhar unicamente “psi”, compartimentalizando o cuidado em saúde. A proposta da internação de crianças e adolescentes nos remete imediatamente aos pavilhões infantis retratados no livro Holocausto Brasileiro da autora Daniela Arbex, o afastamento da escola, da vida social, da família, da comunidade são prejudiciais ao desenvolvimento das crianças e adolescentes. Além de diversas outras atrocidades que não cabem nestas linhas, destacamos o incentivo à compra de maquinas de Eletroconvulsoterapia (ECT), popularmente conhecido como eletrochoque. Historicamente o ECT foi bastante utilizado nos hospitais como um método para punir, torturar e silenciar os pacientes tidos como mais difíceis, era um método usado em larga escala, muitas vezes sem indicação nem mesmo acompanhamento médico. Hoje ainda é uma prática utilizada, com restrições, com uso de anestesia geral inclusive, mas ainda assim é um procedimento violento, e por isso, alvo de duras críticas por parte dos defensores da Reforma Psiquiátrica. É muito emblemático que este governo que valoriza a utilização de armas de fogo, que criminaliza a todo momento os movimentos sociais, que tem proximidade com as milícias cariocas e glorifica torturadores incentive o uso de choques como tratamento.
A Reforma Psiquiátrica que o Brasil vinha construindo vai contra interesses econômicos de grupos poderosos da medicina elitista, da indústria farmacêutica, do poder inquestionável da Psiquiatria, do fanatismo religioso representado pela Bancada da Bíblia. A defesa contra esse modelo da velha psiquiatria, conservador e violento é intransigente, ele não cabe mais nesse mundo. Nós, militantes da Luta Antimanicomial, permaneceremos atentos e atentas e continuaremos levantando a bandeira de uma sociedade que convive com as diferenças, onde o cuidado em saúde mental deve ser necessariamente público, laico, territorial, antimanicomial, democrático e poético. Pro manicômio ninguém volta!

* Catarina é terapeuta ocupacional e militante do Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial (PE)

Edição: Marcos Barbosa