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Bolsonaro não tem bossa

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Sobre morte de João Gilberto, Bolsonaro preferiu se medir pela régua de sua insignificância
Sobre morte de João Gilberto, Bolsonaro preferiu se medir pela régua de sua insignificância - Foto: Reprodução
Em matéria de cultura, presidente parece não entender coisa alguma

O presidente Jair Bolsonaro não entende nada de música. Aliás, em matéria de cultura, parece não entender coisa alguma. Sua trajetória nesse campo vai da defesa da censura às artes à destruição do Ministério da Cultura, entregue a um filisteu de sua estatura, passando por ataque às leis que incentivam o setor e aos artistas que manifestam opiniões contrárias às dele. A maneira como trata a educação, entregue de forma sequencial a dois inimigos do conhecimento, é uma consequência de sua ignorância e ressentimento.

Mas voltando à música, com a morte de João Gilberto, um dos maiores artistas do mundo, o presidente teve a oportunidade de se manifestar à altura do cargo e em respeito ao povo de seu país. Preferiu se medir pela régua de sua insignificância. Saiu-se com uma fala protocolar, que denunciava sua ignorância sobre o cantor. Em sua expressão tosca e sem brilho, fez questão ainda de concluir com seu bordão deselegante, tá ok?.

Quando se compara com a mesma situação quando da morte do MC Reaça, a situação deixa claro não apenas o gosto do presidente, mas sua perversão moral. Ao lamentar a morte do cantor de funk, que se matou depois de agredir violentamente uma mulher, o presidente foi capaz ainda de reconhecer talento numa obra ancorada sempre no estímulo ao ódio e ao preconceito. Na mesma levada, foi seguido por dois de seus filhos.

A arte é uma mescla de espelho e farol.

Como espelho, faz com que as pessoas se reconheçam na criação de seus artistas do coração, como se por meio deles expressassem o que lhes vai na alma. O artista é uma antena que capta sinais do tempo e vibrações do espírito e transforma tudo isso em beleza e inteligência. A grande arte é aquela que confirma certezas presentes na intuição e na tradição. Uma dádiva do reconhecimento.

Mas além de refletir, como um espelho cristalino, a arte também projeta, com seu facho de luz anunciador de maravilhas. Ela apresenta ao mundo e às pessoas novas formas de entender e significar a existência e o sentido da vida. A grande arte é aquela que abre novas perspectivas por meio do estímulo ao novo e ao não vivido. Um dom de transformação.

João Gilberto foi desses raros artistas capazes de condensar em sua criação musical esses dois universos: a tradição e a modernidade. Do passado, recolheu as maiores qualidades da cultura brasileira, com capacidade para flagrar nos sambas antigos o grão puro da brasilidade. De olho no futuro e na universalidade, transformou essa matéria em novo gênero, com forma e conteúdos próprios. O Brasil nunca mais foi o mesmo.

Há uma tendência em tentar entender a música de João Gilberto por meio de sua força técnica, de seu refinamento formal, elegância e sofisticação. No entanto, há uma dimensão social em sua arte que pode ser percebida no sentimento de felicidade que cerca seus sambas. Para que existisse uma música como a bossa nova, era preciso que as canções falassem de um mundo de verdade.

No entanto, não somos o país da delicadeza, do bom gosto, da sensibilidade, do respeito ao outro, do valor do sussurro contra o grito, da igualdade em vez da injustiça. É nessa contradição que a arte de João Gilberto se torna uma obra de civilização, talvez a mais importante da cultura brasileira no século 20.

O cantor e violonista, com seus instrumentos delicados – a voz e o violão – e perfeitamente executados, parece nos obrigar a trabalhar nosso sentido de humanidade para merecer a graça de sua criação. Sua arte não é apenas expressão do que fomos ontem ou somos hoje. A bossa nova é a intuição do que podemos vir a ser.

João deu de graça ao brasileiro o que exige muitos séculos de outros povos. Ele nos fez esperançosos. Na verdade, incorporou na nossa lista de valores um item acima de todos, que funciona como uma espécie de lente moral: a bossa. É ela que nos permite conviver, mesmo com muita dor, com o passado violento que nos constitui e com o presente que insiste em confirmar nossos mais graves impasses. O samba de João nos entrega a certeza que temos por onde nos tornarmos pessoas melhores.

Bolsonaro é carente de muitas qualidades. Não tem cultura, não tem respeito pelo outro, tem medo do que não conhece, não carrega o sentimento da compaixão, despreza a ciência em favor das superstições religiosas. Gosta de armas, preza obediência cega e a subserviência hierárquica inquestionável. Não valoriza o meio ambiente, acredita que violência é um valor e tem pavor de liberdade de imprensa.

E não tem bossa.

Os defeitos anteriores fazem dele uma pessoa menor, a ser combatido com a urgência da política, o sentimento coletivo de revolta e as armas da razão. A falta de bossa o torna desprezível.

Edição: Elis Almeida