Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Eu sei o que é fome

Alex: "Sei que não quero nem para mim, nem muito menos para outros adultos, imagina então para uma criança"

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"São sensações que somente deixarei de sentir quando eu for. Sei que não quero isso para mais ninguém"
"São sensações que somente deixarei de sentir quando eu for. Sei que não quero isso para mais ninguém" - Foto: Flickr Fora do Eixo

Eu sei o que é fome.

Sei o quanto dói.

Sei o quanto não quero ela de volta.

Sei que não quero nem para mim, nem muito menos para outros adultos que conseguem compreender ou imaginar o que é fome, imagina então para uma criança.

Quando criança, sentia e pedia a mãe, ela estava sempre perto, cuidando. A barriga doía, como se um bicho estivesse devorando-a por dentro. Eu chorava e gritava por minha mãe.

Quando ela falava comigo, pelo menos me acalmava, tentava voltar a fazer o que estava fazendo, às vezes brincando de separar os recicláveis, em outras brincando de limpar o pátio. Eu tinha até a minha própria vassoura, pequena e adaptada, exclusiva.

Eu voltava e não entendia o porquê da dor, muito menos o cansaço dobrado, a falta de vontade, de força. Apesar de esforçado, eu não entendia porque não conseguia fazer minhas brincadeiras com a mesma rapidez que em outros momentos.

Por muitas vezes, dormia, acordava e sentia um gosto horrível na boca, sentia a saliva grossa, amarga, parecendo azeda. Às vezes, sentia vômito e expelia um líquido verde gosmento que deixava a boca e a garganta ardendo.

Torcia muito para que um carro parasse na rua, torcia para ver gente correndo e gritando: “tão dando coisas”. Quem “dava coisas” eram pessoas que passavam de carro na vila e davam roupas, comida e doces. Eu torcia muito para ser doce. Para ser comida.

Eu tentava, em meio a tantas outras crianças, chegar perto do carro, queria que me vissem, que me dessem algo, qualquer coisa serviria, qualquer coisa. Eu só queria comer. Queria matar quem me matava. Eu me aproximava e o máximo que conseguia era levantar as mãos e gritar com todas as minhas forças: “Aqui, tia!”

Em geral, eram mulheres que davam as coisas pra gente. Os homens não saiam dos carros, eles dirigiam. Quase sempre conseguia alguma coisa, me chamavam e apontavam o dedo pra mim. “Aquele ali, deixem ele passar.”

Eu não entendia o porquê de tudo aquilo, porque comigo, porque conosco. Estava vivendo em Porto Alegre, na beira do Rio Guaíba, nossas casas eram de pedaços de madeiras enroladas com arame e plásticos, tipo lonas.

A cada agosto, quando chovia, metade de nossas coisas se perdiam, às vezes a chuva e a cheia do Rio levavam até casas inteiras. Eu me sinto muito triste em outubro. Quando chega o Dia das Crianças, muitos colocam suas fotos antigas em seus perfis do Face. Eu não consigo porque as águas levaram isso de mim.

Tomava banho na bacia, tinha um único banheiro em toda a vila. Aliás, não era banheiro, era uma patente, uma casa pequena com um buraco onde fazíamos nossas necessidades. Não tinha luz, a água vinha da bica que ficava do outro lado da avenida Padre Cacique, onde carros passavam em alta velocidade vindos da Zona Sul em direção ao Centro. Atropelos eram constantes. Mas a água era importante e tínhamos que atravessar para pegar. Ir com o balde vazio era uma coisa, voltar com ele cheio, era outra.

Me lembro do pai sempre puxando carrinho, da mãe separando os materiais, lembro de ir junto “buscar papel”. Lembro que eu era bom em pedir moedas.

Eu entendo, sei o que é fome. Eu escrevo e sinto. São sensações que somente deixarei de sentir quando eu for. Sei que não quero isso para mais ninguém.

Eu sei. Eu entendo.

* Alex Cardoso é catador de materiais recicláveis da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada (ASCAT), Central de Cooperativas de Catadores de Porto Alegre  e Região Metropolitana – Rede CATAPOA. Equipe de Articulação Movimento Nacional das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)

Edição: Redação