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O ano em que o Corpo sambou

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"A gramática dos movimentos, mesmo com intensa leveza que poderia aspirar ao voo, não se desprega muito do chão"
"A gramática dos movimentos, mesmo com intensa leveza que poderia aspirar ao voo, não se desprega muito do chão" - Foto: José Luiz Pederneiras/Divulgação
Novo espetáculo da companhia, que está em cartaz em BH, homenageia Gilberto Gil

Em 44 anos de trajetória, o Grupo Corpo tem ocupado um lugar único na cultura brasileira. Com um movimento único de quadril, ele é testemunho, criador e codificador de um jeito de ser brasileiro. Ao mesmo tempo em que ajuda a revelar o que temos de melhor, com sua pesquisa intensa e profunda de nossas matrizes e gestos, contribui com sua própria invenção para tornar o Brasil ainda maior. O Corpo é uma das nossas mais íntegras formas de felicidade.

O novo espetáculo da companhia, GIL, que está em cartaz em Belo Horizonte e segue em turnê nos próximos meses pelo país e depois pelos palcos do mundo, revela um momento especial nessa história. Gilberto Gil escreveu, a convite do grupo, uma trilha em que sua própria obra e visão de Brasil estão no centro da cena. Gil poderia ter reunido várias de suas múltiplas vertentes estéticas e construído, com régua e compasso dados a ele pela Bahia, uma música linda para o Corpo. Mas aí, não seria Gil.

A trilha é uma composição nova, ousada e contemporânea, mas fincada em raízes poderosas, que lança pontes para a arte popular, para a música erudita e para as novas sonoridades que habitam o mundo. É tudo tão singular como reconhecível: a beleza que se revela na ousadia; a memória que aponta sempre o caminho da invenção; a surpresa que aconchega quem se acostumou a aprender sempre com o músico outras formas de fazer soar a beleza e a astúcia.

Pode ser que o desafio de criar uma música para o grupo mexa com a cabeça de qualquer compositor. Mais ainda quando a obra leva o próprio nome e se espera dela uma espécie de síntese impossível. Gilberto Gil convocou o filho Bem e músicos que tocam com ele, deixando perceber que há uma espécie de movimento entre gerações, as que vieram antes dele e as que se seguem. A roupagem instrumental, com sopros bem desenhados e pouco usuais num universo percussivo e pop, preenche o espaço de novas figuras estéticas.

Quem ouve a música se delicia em reconhecer canções que habitam a afetividade de cada um. Por vezes apenas sugeridas, outras citadas quase no contrafluxo da expectativa, os sons ganham ainda o sentido das palavras das letras das canções (às vezes apenas sílabas escandidas pela montagem sonora), que falam da raça humana, de deuses e do conforto de andar com fé. Numa reviravolta concretista, a palavra “corpo” vai ganhando variações e ampliando suas possibilidades até tomar quase todo o universo: pernas, flora, braço, cedro. No início, era o corpo.

Rodrigo Pederneiras criou uma coreografia que dá continuidade à vertente que vem do espetáculo anterior Gira, um mergulho reverente e corajoso na espiritualidade e gestual das mentes e corpos da diáspora. Uma ocupação, no sentido político, do tempo e do espaço. Uma reforma agrária da sensibilidade. Há uma leveza que aponta para o comunal, para o sentido do ubuntu: somos com o outro, ou não chegamos a ser. Todos dançam juntos, se deslocam seguidos pela luz (um portento de técnica) que vem tanto de fora como de dentro dos bailarinos. Como numa procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão.

Em GIL, a todo momento, está presente uma das marcas fortes da reverência a Xangô, orixá do musico. São gestos em que as mãos batem alternadamente no peito e nas costas. Por vezes esses movimentos estão em destaque e são executados por vários bailarinos. Dominam a cena. Em outros momentos, são percebidos individualmente, de forma sutil, quase íntima, como um marcador de espiritualidade para uso pessoal. Como a fé de quem não tem fé. Mesmo assim, pelo sim pelo não, ela costuma acompanhar a caminhada pelo mundo.

Em GIL tudo é solar, o amarelo esplende e envolve a cena. As malhas com estampas de Joana Lira carregam uma trama de cores felizes e formas que alegram o olhar. Há choro e baladas jazzísticas, toadas e música estruturada. Eufonia e distorção. Pop e free jazz. Instrumentos originários como o balafon convivem com sonoridades eletrônicas e montagem quase cinematográfica de sons. O mundo é um só: Europa, França e Bahia. Afro-Bahia.

A gramática dos movimentos, mesmo com intensa leveza que poderia aspirar ao voo, não se desprega muito do chão, como em outros momentos da vida do grupo. O que mais chama a atenção não é tanto a continuidade da história da companhia – que é inegável em alguns movimentos que remarcam a trajetória e mesmo sua notável evolução –,  mas a sensação de que tudo foi criado para essa música e para esse momento. Tudo que não é técnica impecável é pura emoção inaugural. A inteligência só não é maior que a intuição. 

E, para coroar, há o samba. Acho que todo mundo esperava o dia em que o Corpo fosse cair no samba. Em GIL essa profecia se realiza, mesmo que por um breve momento. É preciso prestar muita atenção: o samba é nossa maior conquista de civilização. O Grupo Corpo vem, há mais de quatro décadas, tangenciando essa realização com movimentos quase tão bonitos quanto o samba. O que foi obra de séculos de um povo, depois de tanto engenho e dedicação da companhia, pode agora ser incorporado em sua linguagem como uma dádiva merecida.

Quando o corpo da bailarina sambou – inclusive os braços! – , deu uma vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Em meio à travessia de uma quadra de tanto maltrato, tristeza e angústia para o povo brasileiro, na história de longo curso das eras, 2019 vai ser lembrado como o ano em que o Corpo sambou. Se esse momento chegou exatamente agora, não temos o direito de afrouxar resistência nem perder a alegria. Tudo é possível. Aquele abraço.   

Edição: Elis Almeida