Minas Gerais

Literar

Crônica | Náufraga de amor

Dizem que a gente só sabe, mesmo, como uma pessoa é depois de comer 1 kg de sal com ela

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
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quando Gouveinha pediu sua mão em matrimônio, Clecy recorreu à sabedoria popular:

- farei muito gosto, mas tem uma condição.

- cumpra-se – disse Gouveinha, beijando os indicadores em cruz, à guisa de jura.

- dizem que a gente só sabe, mesmo, como uma pessoa é depois de comer 1 kg de sal com ela.

- dou fé – concordou ele, com os vícios de linguagem de seu ofício: tabelião.

- ótimo. e como duas pessoas levam um ano pra comer 1 kg de sal juntas, ano que vem, nesse mesmo dia, nesse mesmo horário e, Deus me perdoe, mas como sou supersticiosa, tomando frapê de coco nessa mesma lanchonete, cê me refaz o pedido.

- sem mais. ponha no papel, que assino e reconheço firma.

- não precisa, seu bobo, e dá cá uma bitoca, dá.

passou.

muitos bacalhaus, charques e queijos frescal depois, faltando apenas um dia para o pedido oficial, no alpendre da casa dos pais dela, de mãos dadas e olhos flamejantes, enquanto falavam sobre o enxoval que já haviam providenciado e a lua-de-mel em Cambuquira, o Gouveinha teve um súbito e fatalíssimo piripaque.

no hospital, após a autópsia, Clecy descobriu que conhecera tudo sobre aquele homem com o qual dividira 1 kg de sal, exceto que era hipertenso desde os primeiros bigodes, e o secreto sacrifício a que se lançara por ela pareceu-lhe uma prova de amor que nunca mais teria igual, com o que, na capelinha do velório, olhando para o Gouveinha no esquife com uma ternura para duzentas eternidades, de si para si, decretou: "não quero mais saber de ninguém".

não verteu uma lágrima, mas, por dentro, em volume d'água e sal, sentia-se um nada pacífico oceano.

Z Carota é jornalista e escritor.

Edição: Elis Almeida