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Artigo | O neoliberalismo vai morrer no Chile?

As mobilizações espontâneas respondem a causas profundas acumuladas há mais de quatro décadas no país

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Os protestos se tratam da maior revolta popular da história do Chile, duramente criminalizados e reprimidos pelo governo chileno
Os protestos se tratam da maior revolta popular da história do Chile, duramente criminalizados e reprimidos pelo governo chileno - Johan Ordonez / AFP

Desde o dia 18 de outubro o Chile vive um momento de protestos sociais intensos, no qual amplos setores da sociedade manifestam a sua rejeição ao modelo neoliberal vigente no país. Os protestos, que se iniciaram com as evasões ao metrô, em razão do aumento da tarifa do transporte público, e foram protagonizadas pelos estudantes secundaristas na capital Santiago, foram duramente reprimidos pelo governo de Sebastián Piñera, angariando amplo apoio de setores populares e médios que se uniram às mobilizações.

O aumento da tarifa do metrô foi a gota de água que fez transbordar o copo, já que as mobilizações espontâneas respondem a causas muito mais profundas acumuladas há mais de quatro décadas - desde que se implementou o sistema neoliberal no Chile no período do regime autoritário de Augusto Pinochet e que foi se consolidando com os governos pós-ditatoriais.

As reivindicações estão relacionadas a demandas por mudanças estruturais e significam o fim de um sistema fundado em abusos que transforma direitos sociais como educação, saúde e seguridade social em oportunidades de negócios lucrativos. Em consequência disso, o povo chileno vem exigindo uma mudança institucional profunda, que contemple um processo de estatizações de serviços básicos, nacionalização de recursos naturais estratégicos (cobre, lítio e o mar), serviços de saúde e educação universais, gratuitos e de qualidade, um sistema seguridade social justo que ofereça aposentadorias dignas aos contribuintes, respeito e resguardo dos direitos dos povos originários e uma nova Assembleia Constituinte, que culmine em uma nova Constituição política mais justa, igualitária e democrática para o Chile, já que o país possui uma Constituição herdada do período ditatorial.

Sem dúvida se trata da maior revolta popular da história do Chile, a qual vem sendo duramente criminalizada e reprimida pelo governo chileno. Sebastián Piñera optou por responder aos protestos reforçando a escalada de violência do Estado, decretando estado de emergência constitucional e invocando a lei de segurança nacional, entregando a segurança pública para as forças armadas do país, que desde o regime de Pinochet não saíam às ruas. O resultado dessa escalada autoritária do Estado derivou em índices preocupantes de violações sistemáticas de direitos humanos perpetradas pelos aparatos policiais do Estado, contabilizando 23 vítimas.

Organização popular

Mas a despeito do terrorismo de Estado ocasionado pelas medidas ultrarepressivas do governo de Sebastián Piñera, a violência política exercida nas últimas semanas não se traduziu em medo, mas se converteu em dignidade e coragem, em mais cumplicidade e solidariedade, e sobretudo em mais politização e organização popular. Além dos massivos atos de rua, estão sendo realizadas centenas de “Juntas Vecinales” (reuniões de vizinhos), Assembleias Territoriais e “Cabildos Ciudadanos” (espaços de deliberação popular) organizados em praças, parques, colégios e espaços públicos, mobilizados por muitos segmentos da sociedade civil para discutir o contexto atual do país e propor medidas e iniciativas que possam dar respostas as demandas sociais apresentadas no marco das mobilizações, bem como debater sobre uma Nova Constituição.

A pressão social foi tal que obrigou o governo chileno a acatar a principal reivindicação cidadã: a de uma Assembleia Constituinte e assim recuar em sua proposta de Congresso Constituinte e negociar um acordo com as forças de oposição, que prevê um plebiscito (agendado para abril do próximo ano) que dá aos chilenos o poder de decidir sobre redigir uma nova Carta Magna e o método para tal, podendo optar por uma Convenção Mista (composta por 50% de parlamentares e 50% de cidadania), ou uma Convenção Constituinte com 100% dos representantes eleitos pelos cidadãos para redigir a Nova Constituição. No entanto, os chilenos seguem mobilizados por uma Assembleia Constituinte Plurinacional e com paridade de gênero, uma vez que o acordo por uma Nova Constituição anunciado, foi feito pelo governo a portas fechadas apenas com dirigentes partidários e com representantes do parlamento, sem nenhuma representação da sociedade civil organizada. A cidadania também exige que haja responsabilização política por todas as violações sistemáticas de direitos humanos cometidas pelas forças policiais do Estado no atual contexto das mobilizações e uma agenda imediata de restituição de direitos sociais, contra a precarização da vida e contra a crise socioambiental.

Em meio a este cenário de incertezas, uma coisa é certa: o povo chileno vem demonstrando que a “historia es nuestra y la hacen los pueblos”, dando um exemplo de resistência e organização popular, abrindo uma oportunidade histórica de enterrar o neoliberalismo, legado do autoritarismo que segue vigente na atual Constituição do país. O Chile da refundação democrática será um Chile em que ninguém será um mero expectador, mas todos serão protagonistas.

*Doutoranda em ciência política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Edição: Mariana Pitasse