Minas Gerais

ENTREVISTA

“O governo brasileiro nos torna alvo de ataques internacionais”, avalia especialista

Ana Penido, pós doutoranda em relações internacionais, analisa o conflito entre Irã e EUA e suas consequências

Belo Horizonte |
"Não é petróleo, nem eleição. Os EUA querem jogar pesado contra uma força iraniana que não para de crescer como um líder regional"
"Não é petróleo, nem eleição. Os EUA querem jogar pesado contra uma força iraniana que não para de crescer como um líder regional" - Arquivo Pessoal

Terceira guerra mundial, aumento da gasolina, terrorismo, vingança. São muitos os alarmes e informações desencontradas – ou mesmo falsas – envolvendo a escalada do conflito entre Irã e Estados Unidos. Nesta entrevista, Ana Penido, que é bolsista CAPES de pós-doutorado no Instituto San Tiago Dantas (UNESP/PUC-SP/UNICAMP) e pesquisa sobre profissionalização militar, traz elementos sobre o contexto dos ataques e lembra: enquanto os EUA assumiram autoria de um ataque de um general a serviço, o Irã reagiu seguindo a lógica da guerra, mirando em alvos militares.

A pesquisadora critica ainda as declarações do governo brasileiro. “Essa fala [de Bolsonaro, oferecendo o Brasil para sediar um encontro de aliados dos EUA] é um verdadeiro crime, pois podemos ser classificados como apoiadores da ação terrorista executada pelo Estado norte-americano”. Leia a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: O Irã está no epicentro da crise geopolítica atual, mas sabemos pouco sobre o país. A mídia comercial pinta uma imagem de um país atrasado, fechado. É isso mesmo?

Ana Penido: Convido os leitores a abrir um mapa, procurar onde fica o Oriente Médio, identificar os países. Os EUA todos sabem onde fica, e o Iraque a maioria lembra da invasão recente, mas e o Irã? Quando perguntados, muitas pessoas se lembram das mulheres usando burkas, que são aqueles longos vestidos pretos. Mas o Irã é um país de 80 milhões de pessoas, com inclusive mais mulheres no parlamento que o Brasil. Sua expectativa de vida é de 76 anos, 95% da população tem acesso a água potável e alimentação, isso num país que tem apenas 10% da sua área cultivável. Além disso, 88% tem saneamento e 85% da população é alfabetizada, 70% usa internet. Parte disso foi conquistado pós revolução iraniana em 1979, quando o petróleo foi estatizado (hoje o país é o quarto produtor do mundo) e o dinheiro usado internamente. Enfim, o Irã é uma República, com presidente, parlamento, judiciário, imprensa, Forças Armadas. Mas diferente da norte-americana, sua república, desde 1979, tem fundamentação religiosa. Mesmo com alguns protestos que ocorreram no ano passado, o governo iraniano é tido em alta conta pela população.

Os protestos contra o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani reuniram milhares de pessoas que pedem "vingança" contra os EUA. Na terça (7) o Irã atacou duas bases militares norte-americanas no Iraque. Na escalada das declarações e das mobilizações de rua, há quem diga que pode estar se aproximando uma guerra mundial. Isso é exagero ou há mesmo nesse risco?

Falar em guerra mundial traz à memória do brasileiro a primeira e segunda, com características muito distintas do que se desenha, portanto não acho o termo adequado. Parece meio novelesco o termo iraniano de “vingança”, mas talvez seja o mais próximo da realidade. A vingança é um prato que se come frio, portanto não cabe pensar na guerra total de um Estado contra o outro por enquanto, ou uma invasão americana por terra, como foi no caso do Iraque. A maioria dos analistas foram surpreendidos com a rápida resposta iraniana.  Obviamente, os Estados Unidos têm um poder militar muito superior. A tendência é o Irã adotar um comportamento bem mineiro, comendo pelas beiradas, e sem usar as forças convencionais, típico da guerra irregular. Isso do ponto de vista estratégico. Mas as massas nos funerais empurraram o governo de Teerã para a ação. Soleimani era um militar respeitadíssimo, experimentado em guerras regulares e irregulares, idolatrado pelo povo e visto como um possível sucessor do aiatolá Khamenei. Ele foi morto num voo regular, indo para uma missão diplomática. Ou seja, foi uma emboscada. Ele não era um Osama Bin Laden, era uma das maiores autoridades do seu país. A resposta do Irã ocorreu dentro dos marcos do direito de guerra, atacando alvos militares. Embora não considere Soleimani um criminoso, achei bem didático o comentário do general Etchgoyen. Imagina se os EUA atacassem uma casa brasileira com mísseis onde eles identificaram uma célula do PCC? Um completo absurdo.

BdF: Quais são os possíveis desdobramentos desse conflito?

Vejo dois cenários, que dependem de uma informação muito controversa na imprensa sobre a morte de americanos nos ataques às bases na terça. Não havendo mortos: Trump pode baixar o tom e não escalar militarmente, ficando apenas nos discursos e aumento da pressão econômica. É ano de eleição e arriscar um conflito aberto contra o Irã é um movimento perigoso.

Havendo mortos dos EUA ou ligados à OTAN: os EUA podem atacar instalações militares iranianas, ou lideranças civis e religiosas. Mesmo assim, o Irã não é neutralizável, então outros ataques aos EUA poderão ocorrer, seja nas cinco bases militares no Iraque (duas atacadas na terça), na 5a frota dos EUA ou outros. Também podem ser visados alvos israelenses, contando com o apoio do Hezbollah no Líbano e dos Houthis no Iêmen.

Pelo discurso do Trump de quarta (8), parece o cenário 1. Nesse caso, a bola fica com os públicos internos de cada país. Os iranianos estarão satisfeitos com a vingança por hora? Os americanos conservadores percebem isso como recuo? E o partido republicano? Porque os democratas vão bater de todo jeito, apontando a precipitação da ação.

BdF: Já há muitos analistas que criticam a decisão dos EUA de assassinar uma figura como Soleimani e aumentar a temperatura do conflito. Por que você analisa que eles tomaram essa decisão?

Importante deixar claro que o assassinato não foi fruto de ações irregulares, com forças especiais ou serviços secretos. O presidente Trump assumiu diretamente o ataque, e não apresentou nenhuma prova de possíveis planos iranianos que deveriam ser evitados, na mesma atitude de xerife do mundo diante das armas de destruição em massa da época da guerra no Iraque.

Minha hipótese é o poder: disputa pelo xadrez geopolítico de EUA (do chamado Deep State, Estado profundo, para além do Trump) com o Irã. Não é petróleo, nem eleição, nem combate ao terrorismo e nem preocupação com conquistas científicas iranianas. Os EUA querem jogar pesado perante uma força iraniana que não para de crescer, na lógica de se tornar um líder regional (papel que o Brasil almeja na América do Sul). Indo mais longe, os EUA querem sabotar o restabelecimento de uma ordem que implique num retorno de um Eixo de Resistência regional ainda mais forte, tirando de Israel o espaço de manobra que havia conquistado com a desordem em seus vizinhos. Esse tipo de atuação não mira só o Irã, também desestabiliza a mina e destrói a viabilidade dos Estados Sírio, Iraque, Líbano e palestinos. Mas não parece um cálculo racional do Trump para 2020. Ele parece ter percebido a furada e baixou o tom nas últimas declarações.

Mas há muitas respostas para essa pergunta. Uma possibilidade é o cenário eleitoral. Começar uma guerra para agradar os financiadores eleitorais. Mas não necessariamente uma guerra ganha eleições. Elas também já foram perdidas em virtude de guerras. O que ajuda no plano interno é um inimigo externo palpável, mas daí a desdobrar tropas (dinheiro e vidas) americanas é outra história. Trump não tem apoio interno para o ataque, como era no caso do Iraque. Manifestações foram registradas nos EUA, e não há coesão na opinião pública, e isso não se constrói rapidamente. Além disso, Trump expõe os cidadãos americanos a serem atacados ao redor do globo, com reflexos na segurança das grandes cidades. Também não consultou o legislativo.

Outra hipótese seria que foi um ataque para testar quais armas de fato tem o Irã. O Irã, por causa dos embargos, não podia comprar armamentos, então investiram num programa autóctone de criação de mísseis. Os lançamentos de terça foram com tecnologia iraniana.

Há também a discussão sobre o petróleo. Os EUA têm o suficiente, a questão é negar o uso dos outros. A economia dos EUA vai razoavelmente bem, e o ataque azeda negócios. Nos últimos 20 anos, os EUA gastaram 6 trilhões de dólares em guerra. Numa conta de padaria, daria para acabar com a fome no mundo, com o analfabetismo, ou reverter o aquecimento global.

Uma outra resposta possível seria o ataque para negociar em melhores termos. Mas movimentar-se rapidamente em direções contrárias é um comportamento estratégico arriscado. O que é um ato que aponta para uma escalada e promove uma escalada é seguido por uma atitude contrária, para abaixar a temperatura (o que pode ou não ser uma armadilha). Ou seja, Trump pode atacar esperando que os iranianos assumam uma posição de fazer mais concessões e conseguir o efeito contrário. Ou desejar uma radicalização iraniana, em que eles se estendam demais, deem um passo em falso. Ainda assim ele pode conseguir efeitos inesperados e eventos que pode não conseguir administrar, como retaliações apaixonadas por parte das milícias iraquianas, independentes do comando do Irã.

Outra hipótese é o medo da desmoralização. A revolta no Iraque cercou a embaixada em virtude de bombardeios contra áreas de milícias populares iraquianas. Se os EUA não respondessem, a escalada poderia aumentar. Mas escaladas são imprevisíveis e esse argumento soa como desculpa, assim como a acusação dos planos iranianos para matar americanos. É blefe.

BdF: Como esse quadro altera o quadro de forças na região e no mundo?

1. O Irã não é árabe, e sim persa. Já houve diversas iniciativas de dar unidade à região, mas os EUA sempre trabalharam para desestabilizar essa unidade (assim como no caso da América do Sul). A maior tentativa no século passado seria de unidade árabe, protagonizada pelo Nasser, do Egito. Os EUA sempre identificaram o nacionalismo na região com o comunismo, e trabalharam para vencer isso. Existe uma tendência de fortalecimento de defesa dos sentimentos islâmicos diante das potências extra regionais, até mesmo entre inimigos históricos, como Irã e Iraque. Isso está em debate quanto a permanência dos EUA no Iraque, pois o Irã já vinha aumentando sua influência no governo xiita. Não é produtivo para os Estados Unidos imaginar que vá cooptar o nacionalismo iraquiano ou árabe bombardeando o território do Iraque.

2. Os aliados dos EUA estão com um pé atrás, pois temem ser vítimas de atentados. Vários já se manifestaram que a ideia foi dos EUA, que não foram consultados, como Reino Unido, Canadá e Austrália, e mesmo a própria OTAN. Alguns países estão tirando seus militares de lá, como a Alemanha. A maioria faz críticas ao Irã, mas poucos sustentaram que o país tem um governo terrorista, como foi o caso do Brasil. A França se solidarizou com o Iraque pelas violações a sua soberania. Até Israel está tirando o corpo fora, embora seu setor de informações certamente tenha se envolvido no ataque.

3. Mostra que soberania, sem força, é retórica. O ataque é uma afronta completa a dois Estados soberanos – Iraque e Irã. Os EUA se percebem como donos do mundo. Qualquer país que desejar ser importante, mesmo regionalmente, tem que se preocupar com autodefesa (individual ou regionalmente). Eles não fariam isso na China ou na Rússia. Mas fizeram no Irã, que tem o mesmo perfil regional do Brasil. É uma reflexão importante para nosso país.

4. Nos próximos dias, precisamos acompanhar o posicionamento da China e Rússia. Putin já esteve em Damasco se encontrou com Bashar al-Assad. O envolvimento de Putin na Síria é atribuído a Soleimani. A China tenta diminuir a temperatura, pois tem relações comerciais com Irã e com a Arábia Saudita, seu maior fornecedor de petróleo. Mas a tendência é ter sua presença ampliada na região, pois com o estrangulamento econômico do Irã, ele se tornará cada vez mais dependente da China. Ciente disso, já ocorreram exercícios militares conjuntos entre Irã, China e Rússia.

5. No ataque, também foi morto Abu Mahdi, chefe de uma milícia iraquiana pró Teerã. As milícias Hashad foram fundamentais para a vitória sobre o Estado Islâmico (ISIS), e são compostas por mais de 40 grupos políticos, não apenas mulçumanos, mas também cristãos e outros. Receberam armas e treinamento do Soleimani, e não vão deixar barato.

6. É preciso acompanhar como o ISIS vai atuar, se vai. Enquanto Irã e Arábia Saudita estão ocupados, e o Iraque destroçado, sobra espaço. Quanto a isso vale entender um pouco melhor a estratégia que venceu o ISIS e que tem relação com o item anterior. Mais do que exércitos formais, dezenas de grupos de autodefesa se envolveram, por exemplo, na defesa de locais considerados sagrados. Não são apenas mulçumanos xiitas e sunitas, mas inclusive cristãos, se justaram às forças de populares de mobilização no Iraque. Esses grupos têm bastante autonomia, e ficam misturados à população, com poucas necessidades de grandes suprimentos e forte componente ideológico. Soleimani, via forças especiais da guarda revolucionária do Irã, influenciava e coesionava esses grupos. No mesmo perfil, existem grupos no Líbano (em especial o partido político Hezbollah), Síria e Palestina, Ansarullah do Iêmen, no chamado “Eixo de Resistência”. Isto criou uma situação geoestratégica desconfortável para Israel. E, moralmente, afeta os EUA, pois o Irã, uma república fundamentalista, venceu o extremismo religioso e terrorista do ISIS. Não acho que o Irã vá mudar essa estratégia exitosa.

7. Muito difícil imaginar um acordo nuclear com o Irã dificilmente, e desnuclearização da Coreia do Norte nem de brincadeira.

BdF: Quais os impactos disso tudo no preço do petróleo mundo afora?

Precisamos esperar um pouco mais. Num primeiro momento, os preços subiram, mas se isso vai se manter depende das próximas atitudes do Irã, por exemplo, do controle do estreito de Ormuz, muito importante para o transporte de petróleo. Mas economicamente há outra questão importante. O Irã é o quarto maior exportador de petróleo. Tem proposto com Rússia e China as negociações em outra moeda e não no dólar. O Irã chama os mulçumanos (incluindo Turquia) para negociar sem o dólar. Como se comercializa é mais importante do que as reservar nesse sentido.

BdF: Como você avalia esse convite do governo brasileiro para o país sediar encontro entre aliados militares dos EUA para debater os ataques?

Moralmente falando, claro que temos que ser contra a guerra. São vidas, histórias, famílias… Mesmo sendo a continuação da política, é sua forma mais desastrosa e seus efeitos são imprevisíveis.

Pragmaticamente falando, é de uma irresponsabilidade sem precedentes na nossa história, pois vai muito além das perdas comerciais. É bom lembrar que o Irã é o quarto maior destino das exportações de alimentos brasileiros. Mas nos colocar como sede de um encontro que não tem a mínima legitimidade internacional nos transforma em escritório dos EUA, e não há como um país ter respeitabilidade dessa maneira, ou almejar ser um líder regional. Sem falar de medidas ridículas, como proibir a diplomacia de prestar condolências aos cidadãos do Irã. Já avisaram que não participarão desse encontro China, Rússia, França, Iraque, Síria, Turquia, Líbano e os palestinos. Participariam: Afeganistão, Bahreim, Israel, Jordânia, Arábia Saudita e Emirados Árabes.

Outra grave consequência é que um convite como esse nos coloca como possíveis alvos dos ataques de retaliação. Essa fala é um verdadeiro crime, pois podemos ser vistos como apoiadores da ação terrorista executada pelo Estado norte-americano. Ou seja, vai muito além de discordar com a história diplomática brasileira de mediação de conflitos e neutralidade. É expor o povo brasileiro a se tornar alvo de ataques internacionais. Isso sim é um crime contra a nossa defesa nacional. Deveríamos era tirar lições sobre o comportamento dos Estados Unidos no mundo, nos engajar politicamente contra mais uma guerra, e sermos solidários aos povos do Irã e Iraque, que tiveram suas soberanias violadas.

O vídeo da entrevista você assiste aqui:

Edição: Elis Almeida