Minas Gerais

Coluna

Artigo | Namoro, noivado e divórcio

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Depois da demissão de Alvim, a atriz chega com a tarefa de manter o roteiro, mas mudar a direção de cena. O autor da peça continua o mesmo"
"Depois da demissão de Alvim, a atriz chega com a tarefa de manter o roteiro, mas mudar a direção de cena. O autor da peça continua o mesmo" - Divulgação
Regina Duarte representa o projeto autoritário, independente de sua trajetória

Regina Duarte já foi chamada de “namoradinha do Brasil”. Atualmente está noivando com o governo Bolsonaro, que ela apoiou na primeira hora e agora a convida para assumir a secretaria especial de Cultura. O passo seguinte é afirmar seu divórcio com a democracia e a cultura. A mudança de estado civil é simbólica nos três momentos: conservadorismo atávico, adesismo oportunista e incapacidade de convivência com o pensamento divergente. 

No que diz respeito ao divórcio anunciado, ela se afasta da democracia ao considerar o presidente uma “pessoa doce”, exatamente nas ocasiões em que ele se manifesta de forma mais autoritária e preconceituosa. Da cultura ela se separa de maneira definitiva ao defender corte de verbas para a área, na contramão do movimento histórico de luta pela valorização do setor. 

É possível ainda recuperar várias atitudes da atriz nos últimos anos, como o apoio ao armamento da população, a ligação com o setor mais atrasado do ruralismo brasileiro, a participação destacada em passeatas pró-golpe, o empréstimo de sua voz para atiçar a divisão social e criar uma atmosfera artificial de medo em várias eleições. 

A seu favor há um histórico de combate à censura nos anos 1980, que, no entanto, não se mostra igualmente vivo no cenário atual de intensa perseguição à liberdade de manifestação artística e de imprensa. Regina Duarte, é preciso reconhecer, também emprestou seu talento profissional e credibilidade a produções de qualidade, na televisão e no teatro. 

Admirada pelo público, a atriz surge no atual panorama da crise da cultura como uma alternativa à lambança operada por Roberto Alvim, que manifestou de forma explícita a inspiração nazista que sustentava nas sombras o projeto cultural de Bolsonaro. O ex-secretário não caiu por suas ideias, mas pela forma infame que as explicitou. A atriz chega com a tarefa de manter o roteiro, mas mudar a direção de cena. O autor da peça continua o mesmo.

A relativa boa vontade manifestada por parte do setor cultural é explicável: afinal nada pode ser pior que um sub-Goebbels assumido. Além disso, colegas da artista apostam na capacidade de diálogo, mesmo com as divergências naturais. Regina Duarte levaria para o governo seu patrimônio de relações. No mínimo, como ponderou a produtora Paula Lavigne, seria uma estratégia de redução de danos, com a representação de uma direita não fascista. Há controvérsias.

O que parece se desenhar é mais uma mistificação de um governo fundado em mentiras para efeito público e intrigas internas para manter uma coesão baseada no medo. De uma hora para outra, ninguém se identifica com Alvim que, até poucas horas antes de ser defenestrado, era elogiado por seu patrão. Os carreiristas, dentro e fora do governo, já começam a se mobilizar para participar de uma eventual gestão de Regina Duarte, apostando ainda na inexperiência da titular para ganhar mais espaço. 

Não se trata apenas de trocar a figura da cabeça do sistema, mas de questionar a funcionalidade de suas peças. Afinal, desvelado o DNA nazista da administração anterior, não se apontou com a mesma indignação e necessidade de afastamento de condutores da política em instituições como a Funarte, a Biblioteca Nacional, a Fundação Palmares, Iphan e a Ancine entre outras. Muda-se para permanecer do mesmo jeito. A namoradinha chega em meio à disputa ideológica que pode até substituir alguns dirigentes, mas que conta com sua completa submissão ao projeto em andamento e inépcia administrativa assumida. 

Há hoje no Brasil um perigoso incentivo à conciliação de universos inconciliáveis. Em nome do combate à conflagração que tomou conta do país, parece sempre que a atitude de maior equilíbrio está em aparar arestas e encontrar um meio termo. Não é o melhor caminho quando se trata de diferenças essenciais, que exigem fortalecimento de posições e disputa. Democracia também é feita de confrontos. 

Não há como conciliar com estratégias francamente destrutivas, como as que têm sido apresentadas ao setor cultural: censura, dirigismo, filtros, autoritarismo, anti-intelectualismo, preconceito, discriminação, doutrinação ideológica, religiosa e comportamental. Regina Duarte representa esse projeto, independentemente de sua trajetória profissional e personalidade. Que tenha uma vida dura pela frente. É o que de melhor se pode desejar aos fascistas.

Edição: Elis Almeida