Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Rio Grande do Sul é o Estado em que mais se morre em decorrência da AIDS no país

Cinco cidades gaúchas despontam entre as 11 primeiras em número de infecções do vírus HIV

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Brasil de Fato entrevistou Carla Almeida, Coordenadora do Grupo de Apoio e Prevenção de Aids (GAPA) do RS - Foto: Fabiana Reinholz

“O HIV sempre foi a epidemia do outro. Quando ela começou, era a epidemia dos outros, a epidemia dos usuários de drogas injetáveis, das bichas, das travestis, das putas. Estamos aí há mais de 30 e o HIV ainda é a epidemia do outro”, aponta Carla Almeida, Coordenadora do Grupo de Apoio e Prevenção de Aids (GAPA) do RS. “A epidemia da AIDS não é do outro, ela é responsabilidade de todos nós”.

Com pouca visibilidade na mídia - com exceção em determinadas datas, como o dia 1º de dezembro, dia mundial de combate a AIDS, e no carnaval - ao nos deparamos com os números, vemos a urgente necessidade de manter vivo o debate.

De acordo com o Boletim Epidemiológico especial de 2019, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, divulgado no final do ano passado, de 2007 até junho de 2019 foram notificados 300.496 casos de infecção pelo HIV no Brasil. São 136.902 (45,6%) na região Sudeste, 60.470 (20,1%) na região Sul, 55.090 (18,3%) na região Nordeste, 26.055 (8,7%) na região Norte e 21.979 (7,3%) na região Centro-Oeste. No ano de 2018, foram notificados 43.941 casos de infecção pelo HIV, sendo 5.084 (11,6%) na região Norte, 10.808 (24,6%) casos na região Nordeste, 16.586 (37,7%) na região Sudeste, 7.838 (17,8%) na região Sul e 3.625 (8,2%) na região Centro-Oeste.

Nesse cenário, cinco cidades gaúchas estão entre as 11 primeiras no ranking nacional. Ainda em números, a capital gaúcha é campeã em gestantes infectadas com o vírus, cinco vezes superior ao coeficiente nacional.

Do primeiro diagnóstico, que no Brasil aconteceu em 1982 e no RS aconteceu um ano depois, o país que já foi referência mundial na luta contra a AIDS e no tratamento de pessoas vivendo com o vírus padece com o desmonte das políticas públicas e com a epidemia sendo retirada da agenda de direitos humanos. “Nos últimos anos, tivemos um recrudescimento nas agendas conservadoras. Cada vez mais temos menos espaço de falar em direitos humanos. No último ano, especialmente, fomos atropelados por uma agenda fundamentalista”, aponta Carla.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, a coordenadora analisa o contexto da epidemia e dos enfrentamentos que precisam ser feitos. “A AIDS é uma epidemia político-social e ela tem que ser entendida e enfrentada como tal. Precisa ter ações no campo da saúde, mas também compromisso com uma agenda que enfrente as violências estruturais. A resposta ainda é muito incipiente, a gente não consegue mais fomentar e trazer essa discussão para que as pessoas se sintam envolvidas como se sentiam na década de 90, como se morresse antes e hoje não mais. Parece que as pessoas têm esse entendimento, de que não é mais um problema relevante, mas as pessoas continuam morrendo, principalmente nesse estado, continuam se infectando e continuam vivendo com AIDS”, afirma.

Este ano, o GAPA RS e Fórum de ONGs Aids do RS lançaram uma campanha com o objetivo de enfrentar a invisibilidade da epidemia de Aids, a #AidséFato.

Veja abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS: Tu trabalhas desde 1998 na elaboração, desenvolvimento e execução de projetos de prevenção às ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis). Como tu avalias a situação da AIDS no país nessas três décadas?

Carla Almeida: É importante pensar que a resposta brasileira à epidemia de AIDS foi construída a partir de alguns pilares que são importantes, uma união entre academia, sociedade civil e a gestão e os trabalhadores de saúde. Com o passar dos anos, esses pilares foram se rompendo.

Em 2000, quando o programa brasileiro era reconhecido como melhor programa de AIDS do mundo, tínhamos uma resposta à epidemia que conciliava os saberes biomédico, todo conhecimento e as tecnologias biomédicas, e o acesso Universal ao tratamento antirretroviral, com toda uma agenda de direitos humanos. Nas últimas décadas, e principalmente na última, houve um descolamento dessas pautas. Temos avanços no campo biomédico, mas temos muitas perdas na agenda de direitos humanos, teve uma desconexão entre agenda de AIDS e agenda de direitos humanos e isso impacta diretamente na resposta da epidemia. Porque a resposta à AIDS não se dá só no plano biomédico.

É impossível enfrentar a epidemia de AIDS sem tu ter uma agenda comprometida com o enfrentamento do machismo, do sexismo, do racismo, das diferenças de classe e da homofobia e transfobia. Quando acontece essa ruptura, tu começa a ter perda na resposta. Nos últimos anos, com recrudescimento das agendas conservadores e fundamentalistas, veio uma série de retrocessos paulatinamente na resposta brasileira. Tivemos várias campanhas vetadas, campanhas super importantes do ponto de vista do impacto na epidemia, na resposta, junto às populações, e a dificuldade de conseguir colocar a AIDS na mídia.

Uma outra questão importante de se pensar é que a AIDS perdeu muita visibilidade social e relevância política. A partir de 2000 quando ela é reconhecida como melhor programa de AIDS no mundo, é colocado como se a epidemia não fosse mais um problema. Então ela deixa de ser importante dentro da agenda pública, perde relevância na mídia e deixa de ser debatida com a sociedade. A sociedade, hoje, está apartada da discussão de AIDS. Para a sociedade, ela é um problema resolvido, tem tratamento, tem possibilidade de prevenção, então não é mais um problema, o que não é verdade.

BdF RS: Qual é a situação atual das políticas de prevenção e tratamento da epidemia de HIV/Aids no Brasil nesse primeiro ano de governo Bolsonaro?

Carla: Não tem como avaliar as políticas de saúde em um ano. Viemos de um processo de desmonte da política de AIDS e dos serviços de saúde, nos últimos cinco, seis anos. Óbvio que no último ano tivemos um recrudescimento nesse desmonte, algumas questões foram aceleradas.

O que a gente tem hoje? A gente tem acesso universal à terapia antirretroviral, mas ter acesso ao remédio não significa ter acesso ao tratamento. Tratar a AIDS é muito mais do que ter acesso a remédio, precisa ter um sistema de saúde muito bem sincronizado e que veja o indivíduo na sua transversalidade. Para uma pessoa que está numa situação de muita vulnerabilidade social, só ter o remédio não é uma solução. Se ela não tem acesso à alimentação, moradia, se ela sofre violência cotidiana, fica muito mais difícil pensar nas questões de tratamento. Tu tem que ver as pessoas como pessoas integrais, e pensar em políticas que são transversais. Não se pode desconsiderar os determinantes e condicionantes em saúde quando a gente pensa no tratamento ao HIV/AIDS. Tem uma série de outras questões que extrapola o contexto de ter remédio ou não ter remédio. Ter tratamento é muito mais do que ter remédio.


RS vive uma epidemia de AIDS invisibilizada / Foto: Fabiana Reinholz

BdF RS: Como está a situação atualmente no Rio Grande do Sul?

Carla: Temos no Rio Grande do Sul uma epidemia que ainda é muito importante, que parece estar se estabilizando em patamares elevados. Mas tem um contexto que é muito invisibilizado, principalmente em Porto Alegre. Aqui, diferente do resto dos estados brasileiros, temos uma série de elementos que nos permitem indicar que temos uma epidemia generalizada. Enquanto nos outros estados a epidemia continua restrita a algumas populações, aqui no estado ela já extrapolou isso, está muito presente na população em geral. E ter uma epidemia generalizada requer uma resposta da gestão diferente a essa epidemia. Em Porto Alegre, temos sete vezes mais mulheres gestantes com AIDS do quê nos outros estados brasileiros. O RS é o estado em que mais se morre por HIV/AIDS.

Temos uma série de indicadores para além de demonstrar que temos epidemia generalizada. Temos um problema de gestão dos serviços de saúde, porque se estamos falando de uma doença que tem remédio, tem tratamento, quais são as barreiras para o tratamento das pessoas, e por que o estado não consegue se comprometer com uma resposta que seja efetiva para esse tratamento.

Vivemos no Rio Grande do Sul ao longo da última década o sucateamento dos serviços e um desmonte do serviço de atenção às pessoas que vivem com AIDS. Porto Alegre foi uma das primeiras capitais a descentralizar atenção das pessoas que vivem com AIDS. Esse processo, na época, sofreu uma série de críticas da sociedade civil, que se posicionou contra descentralização, e hoje vemos a fragilidade que se enfrenta em Porto Alegre. Por exemplo, como tu fala em atenção descentralizada das pessoas que vivem com AIDS quando não se tem médico na UBS nesse momento? Em que lugar estão sendo acolhidas as pessoas que vivem com AIDS se elas estão com atenção descentralizada frente à toda essa crise do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (IMESF.)

Há uma série de questões que teríamos que discutir em relação à gestão, e principalmente gestão de serviço púbico de saúde. O fato do Rio Grande do Sul ter melhorado seus indicadores é resultado de uma soma de esforços que têm sido feitos, principalmente com alguns recursos do Governo Federal, para tentar potencializar as ações no estado. Mas vemos que, apesar de ter tido essa pequena melhora, tem uma epidemia que é muito importante, e que ainda está em patamares muito elevados.

Não somos mais o estado com a maior incidência e prevalência, mas em compensação das 12 cidades no Brasil com maior incidência de AIDS, cinco são do RS (tabela 32 do Boletim). Rio Grande é a primeira cidade no ranking nacional. Depois, na sequência até 11ª, temos Novo Hamburgo, Canoas, Pelotas, e para além disso, temos Porto Alegre como a 11ª. Temos, dentro na região metropolitana, provavelmente, um dos maiores hotspots de AIDS da América Latina.

Não conseguimos pensar uma política de AIDS que não seja uma política de CEP. O vírus HIV não tem CEP, pouco importa se a pessoa reside em Novo Hamburgo, Viamão ou Porto Alegre, tem uma dinâmica de mobilidade na região Metropolitana que é a dinâmica que a epidemia vai seguindo. Os próprios aplicativos trouxeram uma nova dinâmica para os relacionamentos. Tem que se pensar em plano de enfrentamento para a região Metropolitana, que se possa trabalhar ações conjuntamente e não de forma isolada.

BdF RS: Há ainda a questão do preconceito, estigma...

Carla: Hoje, podemos dizer que muito mais do que o vírus HIV, o que mata é o vírus do preconceito. Tem uma pesquisa que foi realizada esse ano e que fala do estigma que as pessoas que vivem com AIDS sofrem. E o estigma está muito presente no cotidiano das pessoas soropositivas. O estigma dentro das famílias, no mercado de trabalho, a exclusão, o isolamento. Uma série de questões que não são mais discutidas, exatamente porque paramos de discutir a epidemia de AIDS numa perspectiva de direitos humanos.

BdF RS: A questão da AIDS tem perdido visibilidade na mídia...

Carla: A partir do momento que a epidemia de AIDS perde a visibilidade, ela deixa de ser pautada pela mídia. A mídia tem uma responsabilidade muito grande sobre isso. A gestão deixa de priorizar essa pauta dentro da sua agenda e a mídia abandona o interesse, como se isso de fato não fosse um problema. Hoje em dia, quais são as datas que a gente consegue pautar a AIDS na mídia tradicional? A gente consegue pautá-la no 1º de dezembro, que é o dia mundial de luta contra AIDS e eventualmente no carnaval, como se fosse só nessas épocas que as pessoas estivessem expostas para uma possível infecção de HIV. A mídia é fundamental nesse processo inclusive para trazer de volta esse tema para discussão e para debate público.

BdF RS: Em maio do ano passado o governo de Jair Bolsonaro (PSL) publicou o Decreto Nº 9.795, que modifica a estrutura do Ministério da Saúde, rebaixando o departamento responsável por promover políticas de combate à AIDS no Brasil para um setor mais amplo, que também será responsável por analisar ações voltadas para outras patologias como tuberculose e hanseníase. Que impactos isso trouxe?

Carla: Apesar de ter falado que viemos em processo de desmonte, percebe-se que no último ano tivemos perdas muito importantes, principalmente em relação a visibilidade da epidemia de AIDS. Em maio, Bolsonaro sancionou um decreto que acabou com departamento de AIDS. Na época, o movimento AIDS fez críticas contundentes em relação a isso. O departamento de AIDS deixa de existir, a doença foi rebaixada, como a gente brinca na coordenação, e hoje o que existe é um departamento de doenças crônicas e infecções sexualmente transmissíveis.

A perda de visibilidade repercute em todos os níveis. Tínhamos o Programa Nacional de AIDS, um referencial técnico, programático e político para todos os outros programas e sessões estaduais e municipais.

Quando tu deixa de ter um programa, um departamento de AIDS, além de invisibilizar a AIDS, tu pode ter um efeito de desmonte em níveis locais, e tu tira mais ainda a epidemia de AIDS do debate público, trata como se fosse uma questão irrelevante no contexto da saúde do Brasil, o que é uma mentira, visto que a epidemia tem crescido no país. Os últimos dados mostram que temos tido o incremento da epidemia, principalmente quando se compara com os outros países, onde a América Latina teve um crescimento muito impulsionado pelo crescimento da epidemia de AIDS no Brasil.

BdF RS: Há também o crescimento da epidemia entre os jovens, e ainda por cima temos um governo que vem pregando a abstinência sexual.

Carla: O crescimento da epidemia entre os jovens é muito fruto da perda de espaço de discussão sobre sexualidade. Se tu não discute sobre sua sexualidade, se não tem espaço para problematizar, se não tem acesso à informação com qualidade que possibilidade se prevenir de uma gravidez indesejada, de uma violência sexual, ou identificar isso como uma sessão de abuso, ou uma infecção pelo HIV ou qualquer outra DST. Quanto mais se esconde o tema, mais difícil é fazer um debate, pensar em estratégias de prevenção.

Na década de 90 tentou se implementar no Brasil uma agenda que era pautada na abstinência. A gente consegui fazer frente e o governo brasileiro não comprou a agenda, que era uma agenda americana. É importante a gente pensar que o departamento de AIDS, este que o Bolsonaro finalizou, era um patrimônio do povo brasileiro, porque não era política de governo, era uma política de Estado. Uma política que foi construída na década de 80, que se consolidou nos governos do PSDB, e seguiu nos governos do PT, não era uma política de um partido, de um governo, era uma política de Estado. Era espelho, inclusive, de políticas internacionais. O que foi feito foi acabar com uma política de Estado.


GAPA atua há 28 anos no enfrentamento da epidemia de AIDS / Foto: Fabiana Reinholz

BdF RS: Como está a situação do GAPA?

Carla: Não é só a situação do GAPA, mas das ONGs em geral, que é bastante frágil. O GAPA segue sem sede, existe uma promessa de um espaço coletivo para ser entregue, imaginamos que será até o final do ano, ou ainda no primeiro semestre de 2020. Temos operado muito mais em espaço de incidência política e fazendo alguns atendimentos pontuais, mas não estamos mais atuando de portas abertas, pela falta da sede, e isso faz com que se tenha o acesso dos usuários mais restrito. Continuamos sendo muito procurados pelas redes sociais e pelos telefones, principalmente nos telefones pessoais, de pessoas que, por exemplo, recebem o diagnóstico de HIV, de dúvidas sobre infecção por HIV. Porque apesar das pessoas acharem que é muito fácil, não é. “Ah mas tem tratamento”, mas o impacto de um diagnóstico positivo de HIV na vida das pessoas ainda é muito grande. Ainda tem no imaginário coletivo essa relação entre HIV e morte. As pessoas têm cada vez menos informações objetivas e claras em relação à epidemia, às vias de infecção. Se hoje isso já acontece, imagina se tivermos uma agenda pautada na abstinência sexual, em que não se possa discutir isso, que informação esses jovens terão, que risco estamos correndo de potencializar essa epidemia.

BdF RS: O que é preciso ser aperfeiçoado nesse diálogo da AIDS?

Carla: Uma das coisas fundamentais é que consigamos ampliar o debate público acerca do tema. A sociedade tem que ser informada, por exemplo, que aqui no Rio Grande do Sul a gente tem uma epidemia generalizada. A sociedade tem que mais uma vez se envolver e se responsabilizar na construção de uma resposta para a epidemia, seja estando dentro dos espaços de controle social cobrando políticas públicas que atendam as demandas e as novas dinâmicas da epidemia, seja apoiando os atos de rua, enfim. A sociedade tem que se dar conta, como fez na década de 90, de que AIDS é um problema. Enfrentá-la é uma responsabilidade de todos nós. Esse ano lançamos uma campanha para primeiro de dezembro, do GAPA, em parceria com o Fórum ONGS AIDS Rio Grande do Sul, que é: A AIDS é Fato. A campanha é exatamente para dizer para as pessoas que a AIDS no Rio Grande do Sul não é fake news, ela é fato, e precisa que a sociedade se responsabilize com seu enfrentamento.

Edição: Marcelo Ferreira