Paraná

RESISTÊNCIA

Como o MST chegou ao Carnaval de Curitiba

Integrantes de todas as regiões do Paraná juntam-se à Leões da Mocidade

Curitiba (PR) |
De norte a sul do Brasil, o MST brinca e constrói o Carnaval - MST

A rua Marechal Deodoro da Fonseca é trajeto conhecido de quem participa de manifestações públicas no centro de Curitiba. Por ali, milhares de pessoas já tomaram o lugar dos automóveis para erguer suas bandeiras por educação pública, pelo direito das mulheres, por #Elenão e tantas outras. Seja em lutas junto à população urbana, ou marchando por reforma agrária, camponeses e camponesas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também conhecem aquele percurso. 

Neste domingo de Carnaval (23), a Marechal se transforma em “avenida” e uma multidão se organiza em desfile, na maior festa popular do Brasil. É nesse dia que cerca de 30 integrantes do MST de todas as regiões do estado juntam sua alegria, cores e ritmos como parte dos 430 componentes da Escola de Samba Leões da Mocidade. 

O grupo de Sem Terra está em Curitiba desde o dia 4 de fevereiro, no Curso de Formação Política do Carnaval. As formações diárias foram de teoria, história e técnicas musicais e artísticas, oficinas de confecção de alegorias e fantasias, até os ensaios junto aos demais integrantes da Leões. O curso com foco no Carnaval é o primeiro a ocorrer no estado, após três edições de formações em música, realizadas na Vigília Lula Livre, ao longo de 2018 e 2019, e se encerra amanhã, com o desfile. 

De norte a sul do Brasil, o MST brinca e constrói o Carnaval, de diferentes formas, conforme realidade de cada região. No caso do Paraná, Igor explica que a opção tem sido por aprender e trocar experiências com as Escolas: “Pra nós, essa relação do MST com as escolas de samba é uma troca legítima e necessária, de nos ensinar esse legado de conhecimento acumulado. É também o momento em que o MST, nós, Sem Terra, levamos a nossa voz, nossas demandas, as nossas caras, as nossas mãos, inclusive o barro que a gente carrega na sola do pé pra avenida e pras Escolas de Samba”.

Há quem se pergunte o que o campo tem a ver como Carnaval. Igor de Nadai identifica a prevalência de uma visão equivocada de que o campo não tem nada a ver com a cidade, e a cidade não tem nada a ver com o campo. “As pessoas acabam absorvendo isso. Quando você tem uma experiência dessa aqui, esse argumento se desconstrói. Afinal quem não gosta de brincar, quem não gosta de cantar, de se fantasiar, de se divertir?”, questiona.  

Para a educanda do curso Cristiane Hermes, 16 anos e moradora do Assentamento Dorcelina Folador, em Arapongas, a formação é a realização de um sonho que ela pretende levar para a vida: “Está sendo uma experiência incrível isso de trabalhar com a produção de fantasia. A gente vê na avenida as escolas de samba maiores, e agora vê como é feito tudo isso, quanto tempo demora pra fazer, que produtos se usa. É uma coisa super simples, mas bem aperfeiçoada, um trabalho muito bem feito, muito cuidadoso e bonito”. 

A carioca Neusa Aparecida Pereira veio aos dois anos ao Paraná e sempre morou no campo. Aos 57 anos, pele negra e sorriso largo, ela fala do Carnaval com emoção: “O Carnaval pra mim está no sangue mesmo, sabe quando você nasce com aquele dom? Onde eu sei que tem um carnaval, onde tem um samba, eu tô dentro!”, conta entre risos. 

Moradora do acampamento Sebastião Camargo, em São Miguel do Iguaçu, a agricultora participa do curso especialmente no ateliê, na produção de fantasias. “Olha, só de eu saber que a fantasia que eu estou ajudando a fazer, que eu vou estar dentro de uma delas, é muito bom. O sonho da gente de estar dentro de uma fantasia é muito grande, é um sonho muito alto”. Ela será uma das integrantes da tradicional Ala das Baianas. 

O desfile será às 23h40, na Rua Marechal Deodoro da Fonseca (Trecho Rua Tibagi até a Rua Dr. Muricy), no centro de Curitiba. 

Leões e Sem Terra 

A Escola de Samba Leões da Mocidade nasceu em 2007 e tem como marca a inclusão e a relação com os movimentos populares. “Nós trazemos várias comunidades, nós temos trabalhado com pessoas deficientes, deficientes auditivas, trabalhamos com os movimentos sociais e populares. Temos professores da Universidade Federal e de todos os setores. Nós procuramos fazer com que todos participem do carnaval, todos participem desta festa popular para que possamos fazer a festa para a população das comunidades”, conta Mário Cândido de Oliveira, presidente da Escola. 

A Leões está no Grupo Acesso do Carnaval curitibano e, apesar das dificuldades orçamentárias e do pouco incentivo da prefeitura municipal, conta com o esforço e resistência dos mais de 400 integrantes da escola para retornar ao Grupo Especial. Neste ano, a Leões ocupa a avenida com o enredo “Festas Populares do Paraná”, que homenageia os festejos conhecidos de toda a população. 

Bateria: o coração da Escola 

A bateria é o coração do carnaval, “dá ritmo pra escola inteira, pra cantar, pra dançar, pra andar. Sem a bateria não teria graça nenhuma”. A definição é de Sesóstris Filipe Armstrong Oliveira, mestre da bateria da Leões da Mocidade, batizada de Bafo dos Leões. O músico está entre os professores dos educandos e educandas do curso do MST, e já participou de outras três formações em música do Movimento. 

A diversidade marca a Leões da Mocidade, inclusive na formação da bateria. “Nessa época de carnaval, o mecânico, o professor, o agricultor, todo mundo se junta e vira ritmista”, explica o mestre da Escola. “A bateria é assim, quanto mais,  melhor. E a nossa bateria está bem grande com gente de todas as partes, crianças, adultos, idosos, tudo misturado e estamos ali dando pulsação no ritmo pra todo mundo desfilar, se divertir”, completa.  

Entre as componentes da Bafo dos Leões está a jovem Cristiane Hermes. Ela conheceu a bateria do MST aos 13 anos, quando fez sua primeira formação pelo Movimento. “Me apaixonei no primeiro momento em que vi aquilo. ‘Meu Deus, vou amar isso’. Aí comecei a tocar e nunca mais parei”, relembra. “É um sonho pra gente chegar numa escola de samba”, conta a assentada, lembrando os tempos em que a bateria do Movimento era construída com instrumentos artesanais, a partir de galões de plástico e outros materiais recicláveis.

Depois de ter contato com outros instrumentos, Cristine Hermes se aperfeiçoou no tamborim. “Quando eu cheguei no curso me disseram: ‘Vai ter que fazer carreteiro’ , e eu não sabia fazer esse negócio. Fazia e travava do nada. A mão doía. Aí, quando fizemos o primeiro ensaio com a Leões, eu estava lá fazendo o carreteiro. Será que eu precisava de toda essa emoção pra conseguir tocar desse jeito tão perfeito?”, brinca, se referindo a um dos movimentos típicos do tamborim. “Eu fui cada vez mais melhorando com os ensaios. É uma emoção que não sei explicar, é uma coisa tão gratificante”.  

Para Neusa Aparecida Pereira, o ritmo da bateria remete à memórias ancestrais: “Só ouvir a batida do tambor já me emociona, porque a minha bisavó, a minha mãe contava, era de uma origem que tocava o tambor, batia, e eu sinto quando eu escuto o barulho do tambor [....]. Eu fiquei muito feliz, saber do curso que eu ia ter aqui, que eu ia aprender o tambor, que eu ia aprender a bater as caixa, foi muito 10 mesmo. Foi um sonho que eu realizei. Pra mim foi fantástico”, conta emocionada.

Manifestação cultural como protesto

Nos últimos anos, cresce no Carnaval o tom de festa com protesto. Sambas-enredo com temas contestatórios que ecoam muito além dos 50 minutos de desfile. Igor de Nadai, educador e músico do MST que integra a organização dos cursos e da batucada do movimento, diz que desde suas origens o Carnaval tem um caráter de manifestação: “O próprio fazer a festa popular na rua, em si, já é um ato de resistência”. 

As escolas de samba acumularam experiência ampla de organização das grandes apresentações do Carnaval. “É um legado acumulado pelos pobres, pelas comunidades negras, pelas periferias da cidade principalmente. É um legado cultural, técnico, linguístico muito grande”, completa Nadai. 

Diante dos ataques do governo federal ao conteúdo e às políticas públicas de Cultura, o presidente da Leões da Mocidade, Mário Cândido de Oliveira, aponta a necessidade de fazer o enfrentamento para evitar um retrocesso ainda maior: “Quem gosta de fazer Cultura Popular depende desse exercício, e assim que vamos poder modificar todo esse sistema [...]. Essa organização que estamos fazendo, vendo esse povo participando e sentindo o samba, está mostrando que é possível buscar uma mudança na situação atual”.  

*Matéria e foto feitos também pelo Setor de Comunicação e Cultura do MST Paraná 

Edição: Pedro Carrano