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Artigo

Uma nova democracia só pode surgir sobre os escombros do machismo bolsonarista

Lutar pelos direitos das mulheres no Brasil implica mais do que resgatar a democracia que vinha sendo reconstruída

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
O momento exige que disputemos corações e mentes das mulheres na sociedade brasileira, para além das bolhas de esquerda - Mídia Ninja

As mulheres seriam “melhores e mais fortes” que os homens e isso, segundo Moro, motivaria as agressões sofridas por nós. Tal bobagem foi pronunciada no lançamento do Pacto pela Implementação de Políticas Públicas de Prevenção e Combate à Violência contra Mulheres, em 07 de agosto de 2019.  A psicanálise de buteco aí quer vender mercadoria podre: a violência masculina seria mera reação do macho intimidado.

Longe de mim gastar este importante espaço com a desconstrução da demagogia anteriormente destacada. Ela só me vale para confirmar que o medo foi o combustível do projeto que levou à vitória de Jair Bolsonaro em 2018. E ainda o sustenta em seu governo.

Mas não se trata daquele medo “produtivo”; o da aventura progressista; o do desbravamento de novos caminhos, que acomete pioneiros e pioneiras sociais. Trata-se aqui do medo conservador, do que tenta impedir que a humanidade avance em conquistas civilizatórias, no rumo da mais profunda igualdade social, em meio à mais radical diversidade da vida.

Nós ainda não sabemos, com o necessário rigor e detalhamento, quem foram as mulheres que nele votaram. Quem foram as burguesas, as pertencentes às várias camadas das classes médias, as proletárias, as camponesas que o escolheram?

Mesmo tendo em sua memória o machismo e a misoginia dele, ainda assim, muitas mulheres votaram no então candidato pelo PSL. No segundo turno das eleições, ele teve praticamente o mesmo percentual de votos (cerca de 40%) de mulheres que Fernando Haddad angariou. Para quem passou boa parte de sua vida pública destilando ódio, fazendo apologia de estupro, relativizando agressões e preconceitos, associando virilidade e “produção” de filhos homens (lembram-se da menção à “fraquejada”?) esse é um número bem expressivo.

No final de agosto de 2018, as pesquisas lhe davam apenas metade desses votos do segundo turno. O que teria acontecido para uma mudança tão drástica, em pouco mais de dois meses?

A eficiente gestão política e social do medo foi sua principal arma. Até a indignação mundial e nacional com o assassinato de Marielle Franco foi transformada em medo. As estatísticas de agressões físicas no país tiveram efeito contrário, na mesma linha. E a memória de suas falas e gestos machistas não foi suficiente para evitar uma adesão que se mostrava atípica.

É claro que tal adesão, hoje, está abalada. Explodem casos de agressões físicas e verbais às mulheres, no rastro da vitória do bolsonarismo. E o feminicídio alcança patamares inéditos. Políticas sociais protetivas de diversas ordens foram desmontadas e atingem, em cheio, boa parte de suas eleitoras. A “política pública” de segurança do atual governo se resume àquilo que as mulheres mais temem: a disseminação de armas como meio ilusório de defesa da vida e do patrimônio. A violência doméstica e os assassinatos da juventude negra e pobre, das periferias, crescem, inclusive pelas mãos dos próprios agentes policiais do Estado. E é no colo feminino que mais recai a dor de todas as perdas daí advindas. Acrescente-se a fome nas camadas mais pobres da população, que começa a aparecer como realidade tangível: com o desemprego e emprego precário, agravados pelas perdas de políticas sociais.

Eis porque o 8 de Março adquire a dramaticidade de nosso tempo. Lutar pelos direitos das mulheres, no Brasil, implica mais do que resgatar a pálida democracia que vinha sendo reconstruída desde a década de 1980. É preciso muito mais: urge uma nova democracia e esta só pode surgir sobre os escombros do edifício misógino que foi a vitória do bolsonarismo. Machismo é machismo e qualquer um deve ser repudiado. Mas esse que não dissimula sua manifestação é o que deve ser nosso alvo imediato. Exige-se, portanto, que disputemos corações e mentes das mulheres na sociedade brasileira, para além das bolhas de esquerda.

A experiência com este um ano de governo, as perdas concretas, as desilusões, as certezas adquiridas e as dúvidas surgidas, com o futuro das mulheres sob o governo Bolsonaro/Guedes devem nutrir nossa militância junto às periferias pobres. É aí que rebate o aumento das violências doméstica, da bandidagem e do Estado. É aí que repercute a carestia. O crescimento das doenças. A queda da qualidade de vida e a sensação de insegurança.

A exploração e a opressão das mulheres são uma demanda do capital. Uma condição para os dilemas do mercado. E não apenas uma perversão masculina, ainda que também o seja. Enfrentá-las em 2020 nos impõe também disputar espaços de poder. Que mais mulheres se lancem à ousadia de gerir as cidades e ampliar suas participações nas câmaras municipais.

E que o medo e as justas apreensões das mulheres, sobretudo daquelas mais pobres, sirvam para impulsionar um amplo movimento de reconstrução da democracia. Mas, não uma democracia em abstrato. Democracia como substantivo feminino concreto!

Neila Batista é assistente social, vice-presidenta do PT-BH, ex-sindicalista, ex-vereadora e ex-gestora pública nas três esferas de governo, assessora da Deputada Estadual Beatriz Cerqueira (PT).

Edição: Joana Tavares