Rio Grande do Sul

SÉRIE 8 DE MARÇO

Negra Jaque: 'O hip-hop é minha ferramenta de vida'

Rapper porto-alegrense rima ativismo feminista e anti-racista e se consagra cantando a história negra das periferias

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em mais uma entrevista da série especial sobre o 8 de Março, confira um pouco do muito que Negra Jaque tem a dizer - Foto: Arquivo pessoal

“Quando tu não é alvo aqui
É fácil dizer Marielle
A execução, juiz, promotor
E o lema e a bala que fere
Quantos vão ter que morrer?
Aqui nossas mães não suportam
Tá na hora de aprender que VIDAS NEGRAS IMPORTAM
O bonde tá em formação
Temos brilhos em nossos olhares
Pega a visão, sente a pressão
E o Brasil vai virar palmares"

Trecho de 80 Motivos - Negra Jaque

 

Professora, pedagoga, educadora popular, mãe, suas letras e sua própria vida são inspiração e força que apoia mulheres que sofrem violência em todos os âmbitos.

É de rima e resistência o seu verso. É de cidadania e denúncia sua presença de MC, demarcando a presença feminina no cenário sexista do rap local.

É de aço e ternura sua fala. Um olhar de água e horizonte sedimentado todos os dias na parceria de muitas negras como ela.

Em 2015, Negra Jaque venceu a Batalha do Mercado, um festival de rap de Porto Alegre. Com o prêmio gravou “Sou”, seu primeiro EP. O segundo veio em 2018, com “Deus que Dança”, álbum de composições próprias com produção independente. O terceiro é o álbum “Diário de Obá” lançado em outubro de 2019. É produtora da Feira de Hip-Hop de Porto Alegre.

Em cada fala uma verdade, vivida, sentida, expressada. Ela traz na voz, na fala, na pele, no cabelo a força de quem sente a guerra cotidiana do racismo e do machismo no morro, na vida. E responde com arte, com consciência, na troca de apoio entre mulheres. E como ela diz, morre e nasce todos os dias pela sua resistência, pela sua expressão que ecoa a vida de muita gente.

Em mais uma entrevista da série especial sobre o 8 de Março, confira um pouco do muito que Negra Jaque tem a dizer.

Brasil de Fato RS - Quem é a Negra Jaque?

Negra Jaque - Sou Negra Jaque. Na verdade Jaqueline Trindade Pereira, 32 anos, moradora de uma comunidade chamada Morro da Cruz, em Porto Alegre. Tenho um filho de 12 anos que se chama Erick. Professora primária, graduada em pedagogia e outros cursos de educação popular, formação cultural nessa área de mobilização comunitária. Atuo como rapper ativista, oficineira, compositora. O meu mundo permeia arte e educação nesses espaços.

BdF RS - Como o rap entrou na tua vida?                        

Negra Jaque - O rap chegou quando eu tinha nove, 10 anos, através dos Racionais MC’s, Ndee .Naldinho, esses grupos masculinos que de certa forma relatavam o que acontecia nas periferias do Brasil. Ouvia escondida porque pra minha mãe não era música de menina ouvir. Ia para trás da casa escutar e transcrever as letras para aprender o que estavam falando. Mas o início da minha história foi estudando para ser professora. A partir dos educadores e pedagogos, como Paulo Freire, pesquisei como a juventude se organizava. Encontrei a cultura hip-hop na sua complexidade, como movimento universal, com toda a sua essência, o DJ, o BBoy, o grafiteiro, e o MC que é toda parte escrita, que eu represento. E o quinto elemento que é o conhecimento de tudo isso. Aí eu tinha 17 anos, comecei a escrever rap e nunca mais parei!

BdF RS - Esse movimento é pedagógico para as comunidades?  

Negra Jaque - O movimento de música que enfrenta e dialoga com as mazelas sociais do Brasil é o hip-hop. Eu tenho muito orgulho de fazer parte dele e toda sua densidade. É um movimento conflituoso, porque estamos ali enquanto artistas escrevendo e narrando e, ao mesmo tempo, sendo sujeito e autor das histórias. As periferias comunicam através do hip-hop porque é um movimento para além da música: é um movimento político, artístico, educacional. Ele fala com o cara que é usuário de drogas, com a mulher violentada, vai enfrentar a polícia nas suas letras e performances.


"O movimento de música que enfrenta e dialoga com as mazelas sociais do Brasil é o hip-hop" / Foto: Katia Marko

BdF RS - É uma alfabetização cidadã?

Negra Jaque - Costumamos dizer que os livros de história são os nossos discos. Se a gente vai falar sobre essa referência preta é escutando a música brasileira. Há pouco tempo a gente conhece literatura negra. É recente se enxergar nas narrativas com escritoras como a Ana Maria Machado, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo... Essas mulheres maravilhosas que ousaram escrever sobre a própria história.

BdF RS - Tu tens um microfone tatuado no colo, perto da garganta. O que isso representa pra ti e o que o hip-hop tem a ver com esse símbolo da expressão, da vocalização?

Negra Jaque - Fiz essa tatuagem em 2015. Passei por um processo de relações abusivas que as mulheres passam. Tive que dizer para mim que o mais importante naquele momento era estar no hip-hop. Por isso essa baita tatuagem. Eu soube desse problema e fui direto para o tatuador e disse: eu quero esse microfone aqui no peito. Eu sofri horrores e durante esse processo de dor foi um momento de me encontrar e ampliar tudo o que eu acreditava: essa ideia de liberdade, respeito ao próprio corpo, de amor a si mesma.

BdF RS - Esse é uma atitude permanente, é um exercício diário?

Negra Jaque - O quanto ainda todos os dias eu tenho que passar por esse processo sim. De negação de medo, de negação de culpa. Porque, enquanto uma mulher livre, sou uma mulher que vive consigo mesma, moro sozinha.

Tem as outras amigas próximas também que partilham, moram sozinhas também, se desafiam a ficar solteiras, porque toda pessoa que se aproxima muitas vezes tem esse caráter de relacionamento abusivo.

Então eu tive que dizer para mim e para o mundo para o que eu vim, e o hip-hop é minha ferramenta de vida. Essa voz, esse questionamento sobre o mundo está colado na minha pele, está escrito em mim. Esse microfone não é um simples desenho: ele diz muito do que eu sou, para que eu vim.

BdF RS - Como tu vê a luta diária das mulheres por equidade para além do 8 de Março?

Negra Jaque - Várias mulheres devem ter passado por coisas assim: essa adolescência problemática onde a gente não se reconhece. De estar em um lugar onde não querem que a gente esteja, porque a gente existe simplesmente. Aí se torna mulher, se torna mãe, está no lugar onde tu é, simplesmente, para aquela criança, para aquela família.

Passa aquele período, me separei. Vivi minha vida com hip-hop, dentro do espaço do hip-hop. Fui violentada também, me difamaram das piores coisas. Como fizeram com todas as mulheres dessa cidade e as mulheres foram embora. Eu disse: eu não vou embora, eu vou ficar aqui, vou continuar fazendo, vou continuar nesse lugar.

Aí me torno adulta, passo o período de muitas lutas dentro da cultura hip-hop. Em 2018 tenho a minha mãe diagnosticada com uma doença que não sabe nos rins, e eu no hospital tratando ela. E eu tive uma relação conflituosa com a minha mãe, porque ela vivia uma relação abusiva. A gente passa por um processo de geração em geração, a gente passa por um processo de cura, dos problemas que as nossas avós, as nossas mães tiveram. Para não reproduzir o que minha mãe passou decido isso para minha vida, para os meus filhos não passarem por isso.

BdF RS - Como essa violência de classe, racial e de gênero acontece na tua vida?

Negra Jaque - A minha mãe estava fazendo tratamento para cirrose. No início do tratamento disseram que a minha mãe era usuária de droga. Nunca vimos a mãe fazer nada disso. Quando fomos no hospital específico, que é o Femina, descobrimos que ela estava com câncer em fase terminal. O hospital que atendeu inicialmente a julgou pela cor da pele, porque ela era uma mulher preta, porque era uma mulher pobre. Todos esses processos de negação de sujeito eu passei do lado da minha mãe. Aí eu tive que renascer nesse processo, todos os dias eu morro.

Cada problema, mesmo dentro do espaço de mulheres a gente é violentada. Porque as mulheres reproduzem um machismo dentro e não conseguem ter outras mulheres no espaço de liderança. Isso acontece todos os dias. Não tem uma fórmula básica. É ir para respirar, chorar o que tiver que chorar, levantar no outro dia, se apoiar nas amigas do lado, as amigas que acabam no processo que eu estou também, as famílias que a gente escolhe.

E renascer todos os dias, morrer todos os dias, porque esse é o mundo que a gente ainda vive, por isso estamos plantando coisas novas, ideias de liberdade com essas mulheres do mundo.

Por isso estamos aqui podendo contar as nossas histórias para que outras mulheres não passem pelas mesmas coisas ou tenham um alerta. Porque a gente não pode definir sobre a vida da outra, julgar a outra porque ela está dentro do espaço de relação abusiva, está violentada. Você tem que ter um braço de acolhimento. Braço de julgamento ela já tem muitos. Eu passei por isso.

As mulheres se sentem culpadas por algo que não tem culpa. Nenhuma mulher tem culpa de ser violentada. Nós introjetamos porque é cultural, está dentro do nosso corpo essa questão da culpa por alguém estar te olhando. É um exercício diário, um exercício cansativo.


"Estamos aqui podendo contar as nossas histórias para que outras mulheres não passem pelas mesmas coisas ou tenham um alerta" / Foto: Katia Marko

BdFRS - A arte é um instrumento para sustentar essas escolhas.

Negra Jaque - Tu tira de dentro de ti aquele peso e vira letra, vira música, trilha sonora do dia. É como se fosse uma sessão de descarrego. Os meus shows são uma sessão de descarrego. Eu libero tudo ali. 

BdF RS - Como foi essa identificação com o hip-hop e a convivência familiar?

Negra Jaque - Já fiz a despedida dos meus pais. Eles faleceram há um ano. Meus pais também eram moradores da comunidade, tiveram pouca escolaridade. A vida deles era para trabalhar e dar o sustento básico dentro de casa. Minha mãe foi uma pessoa que sempre me incentivou muito no estudo e na formação. A presença para fazer as coisas, me formar, a sair da comunidade foi da minha mãe. Meu pai sempre foi ausente nessas questões de orientação.

Sou a filha mais velha de quatro irmãos:  a Jaciana, o Guilherme e a Giovanna. Convivemos todos na comunidade e nos damos bem. Com a despedida dos nossos pais ficamos mais sensíveis. Enquanto mais velha, acabei de orientadora, matriarca, fazer a gestão da família e tocar.

BdF RS - Como mulher negra da periferia, como tua arte se desenha?

Negra Jaque - Todas as minhas narrativas partem do pressuposto desse lugar, desse olhar de ser mulher preta da periferia que tenho muito orgulho. Mas não preciso estar o tempo todo falando sobre essas mazelas. Tem muitas outras coisas boas para falar, outras contribuições intelectuais, tanta coisa de criatividade, de produção, empoderamento que estão ligadas sim por eu ser uma mulher preta. Mas não precisa, necessariamente, me colocar nessa gaveta e ficar o tempo todo falando nisso. 

BdF RS - Como é essa possibilidade de sair da gaveta e mostrar todas essas nuances?

Negra Jaque - Essa alternativa de poder conviver com outras pessoas, em muitos lugares oferece muitas possibilidades. Final de semana, por exemplo, participei de um show de lançamento da Tati Portella, no bairro Floresta. Uma casa gestada por duas mulheres, uma do reggae e uma mulher não negra.

Então me possibilita outras criações de projetos que não são ligados à questão negra ou a questão feminina negra. Pensar numa perspectiva de cidade, em outras campanhas, outros trabalhos que falem para todas as mulheres. Dar um olhar dessa perspectiva da mulher brasileira. Isso possibilita outros projetos como o Bloco das Pretas, que tem a narrativa de mulheres pretas artistas, mas trabalha com toda a cidade porque está no calendário de comemoração de aniversário de Porto Alegre. Isso possibilita fazer esse trânsito e ter lugar de fala em outros espaços que não são essas gavetas determinadas.

BdFRS - Como é essa escuta plural nesse período conturbado?

Negra Jaque - Eu sou uma pessoa que busca dar o melhor de mim em todos os espaços. Quando tu se depara com pessoas que querem ter o poder da palavra, mas na hora da decisão não conseguem decidir, é muito difícil.

Temos empoderamento. Muito bonito! Mas e as suas responsabilidades? A tua contrapartida? Até que ponto esse empoderamento é consciente e suficiente?

As pessoas querem falar, falar, falar, colocar sua opinião sem refletir o que está em torno, sem ter a consciência da presença do outro naquele espaço. Querem o poder de voz, mas não se comprometer. Então a gente fica em uma situação muito difícil, porque o mundo é feito de pessoas que se movimentam.


"Temos empoderamento. Muito bonito! Mas e as suas responsabilidades? A tua contrapartida?" / Foto: Katia Marko

BdFRS - Nesse processo de discussão do feminismo, até que ponto ele reflete a diversidade da situação das mulheres. Ele contempla todas as vozes?

Negra Jaque - O processo do feminismo - da forma como ele é - não contempla a maioria das mulheres. Costumo comparar: enquanto mulheres tiravam e queimavam os sutiãs. As mulheres pretas estavam em casa cuidando dos filhos das manifestantes, tapando seus corpos que eram expostos.

O nosso ser mulher em uma sociedade global como a nossa, dá um outro caminho de proteção desse corpo que é objetificado. Não dessa liberdade desse corpo onde todo mundo pode usar.

Nosso papo é diferente: vai na contramão do feminismo que na sua maioria se apresenta esse feminismo acadêmico. Esse feminismo não conversa com a tia da vila! Ele não tem sentido porque as tias da vila são 54% da população brasileira.

É um discurso que não tem o pé no chão. Está falando de coisas que tu leu, não de coisas que tu vive!

Eu não acredito em governante que nunca passou fome. Não acredito em liderança que nunca passou fome ou que nunca sabe o que acontece. Se a pessoa não experienciou ela não vai poder falar completamente da dor do outro. Ela não entende. Ela pode até ter um pouquinho de empatia, mas não vai compreender essa complexidade.

O Brasil foi um território explorado, invadido que trouxe pessoas sequestradas para esse lugar.

Então se a gente não se der por conta que essa é a nossa base estrutural, e essa é a base das pessoas que estão nesse lugar, não vamos conseguir chegar a lugar nenhum. Vai continuar sempre falando bonito na televisão, na internet, e as coisas não vão realmente avançar.


"Nosso papo é diferente: vai na contramão do feminismo que na sua maioria se apresenta esse feminismo acadêmico" / Foto: Katia Marko

BdF RS - A profunda desigualdade de ocupação de espaços entre homens e mulheres segue abismal. Tu trabalhas com educação, como acelerar essa necessária mudança na formação?

Negra Jaque - O conceito que a pessoa tem de ser humano se estrutura e é oportunizado até os 6 anos de idade. Sou muito, muito, muito grata ao aprendizado que tive com a educação infantil. Antes desse processo de instalação de escolas e creches no país, quem cuidava das crianças eram as mulheres pretas. Isso também não é contado, não é citado. Se formos pesquisar a história das cantigas populares, como o boi da cara preta, costumo falar nas formações: se o papai foi trabalhar e a mamãe tá na roça, quem é que tá cantando para o bebê? É essa mulher preta que fazia a gestão da educação infantil no país, que amamentava, que fazia toda a organização desse sujeito.

É nesse período que se diz que se pode usar qualquer cor e roupa, que todos têm os mesmos direitos, que se nutre essa criança com uma boa alimentação, com um bom ambiente. Sou muito grata porque tivemos vários projetos de implantação de escolas de educação infantil no país. Isso fez com que essa geração hoje, do empoderamento, que gosta dos cabelos, que gosta de si, que vai para rua e diz não, eu não quero: meu corpo minhas regras, são frutos dessa implementação, desta educação infantil forte, com uma literatura que atenda aquelas pessoas e que elas se percebam, se enxerguem.

BdF RS - Como tu vê a questão racial tratada no ambiente escolar?

Negra Jaque - A gente tem a lei 10.639 com vários artigos sobre a cultura de matriz africana, da questão indígena no Brasil. Poucos professores executam. Isso é um dever de todo o Brasil. Quem entende a história é consciente da importância de trabalhar a África nesse continente. A partir disso teremos pessoas que se gostam, que não se matam, não se violentam.

A luta no Brasil é racial. Há um condicionamento dos seres humanos que estão ali para segurar o país. Somos essa primeira camada. Depois a gente fala sobre a questão econômica.

O racismo é um sistema complexo e inteligente que serve para manutenção econômica.

Eu acho que todo professor deveria ser obrigado a trabalhar a história da África, não a história da escravidão, não o processo da escravização, que é violento. Eu não vou querer me ver como aquela pessoa chicoteada, como animal objetificado. Ninguém quer isso. Eu quero me ver de outra forma. Tem histórias maravilhosas, contos e a própria literatura brasileira carrega muita coisa.

BdFRS - Há ainda quem negue que haja racismo no Brasil. Como enfrentar essa realidade que está ainda mais explicita com o atual presidente?

Negra Jaque - Tem lugares no Brasil em que a democracia nunca chegou. Eu costumo dizer que a gente está partilhando esse espaço de não democracia. Essa é a consciência. Conversamos no grupo de mulheres, da galera, sobre o que é o espaço da democracia na periferia. Tudo isso que a grande população hoje, principalmente os militantes de esquerda estão sofrendo, a população pobre, preta sempre sofreu, sempre apanhou da polícia, sempre levou spray de pimenta. Sempre!


"Tem lugares no Brasil em que a democracia nunca chegou" / Foto: Katia Marko

BdFRS - Essa consciência sobre o racismo profundo e institucional é crescente?

Negra Jaque - Foi se fazendo um trabalho há uns 100 anos para que hoje a gente fosse um pouco mais consciente sobre a questão do racismo. As pessoas estão conscientes a partir das nossas leituras, de tantos trabalhos, do movimento social, do movimento de mulheres, pelo movimento negro, pelo movimento social ligado à assistência social. Estamos em um processo muito importante em que as pessoas registram, filmam, transmitem tudo que acontece. Isso está aumentando a quantidade de casos identificados de racismo e essas informações estão chegando mais rápido.

BdF RS - Como tu vê o atual governo e a questão do racismo?

Negra Jaque - A gente vive hoje no Brasil uma relação abusiva, de extrema violência. É como se eu estivesse em uma casa e essa pessoa, homem ou mulher, independente do gênero, tivesse um companheiro que provê economicamente, que detém o poder de fala e nos violenta.

Vários representantes que estão na gestão pública não têm vergonha nenhuma de dizer que é esse tipo de gestão racista que querem. Na primeira semana da eleição do atual presidente ele disse que quem votou nele sabia que ele era assim. Essa é a população.

E a gente tem no imaginário da população de não ter uma autoestima muito desenvolvida. Temos um povo brasileiro que não se gosta, não se enxerga, se acha menor. Isso afeta diretamente nas decisões porque há uma ideia de que se precisa de um salvador.

É meio como: “sou casada, vou ficar com esse homem porque pelo menos paga as contas”. É a mesma relação.

BdF RS - Por que tu achas que muitas pessoas votaram em Bolsonaro mesmo estando claro um conjunto de padrões autoritários, populistas e conservadores?

Negra Jaque - A liberdade assusta. A gente parte do princípio de que pessoas se assustam com a liberdade dos outros. Assusta o outro ser o que quiser, independente economicamente, de pensamento.

Acho que a gente estava nesse período anterior num processo de mais liberdade: “vamos criar coisas, vamos pensar, eu posso ser livre, eu posso ter o gênero que eu quiser, eu posso me envolver quem eu quiser”.

A população tem medo dessa liberdade. Boa parte da população não foi ensinada a dizer “bom esse corpo é teu cara, pode fazer o que quiser com ele, e com os teus pensamentos”. Fomos condicionados a ficar nesse lugar de segurança. Ficar onde estou do que ir onde eu sei que eu vou ter que criar, lidar com essa tal liberdade. 

Nossa sociedade é uma sociedade do medo. A gente cresce na sociedade do medo. A gente engravida ou a gente se protege de engravidar ou não com medo de passar trabalho, a gente trabalha com medo de passar fome, a gente se relaciona com medo de ficar sozinha, a gente chega muito cedo nos horários, não se rebela contra ônibus, contra a passagem porque tem medo de ficar sem transporte, a gente vive organizada numa sociedade do medo.

Então quando a gente vive em uma sociedade do medo a gente vai fazer qualquer coisa para que a gente se sinta, ou sinta uma leve sensação de proteção. Enquanto a gente viver na sociedade do medo a gente vai eleger pessoas assim.

BdF RS - Como esse medo é alimentado?

Negra Jaque - As religiões fazem isso com as pessoas. A política faz isso com o condicionamento. A polícia faz isso com as pessoas. O condicionamento pela questão dos remédios, a função da droga faz isso. O medo de enfrentar a vida faz com que a gente use droga e se perca no mundo. De querer se isolar, de não querer enxergar aquilo que está na nossa frente. Não querer enfrentar a própria vida.

BdF RS - Tu poderias falar um pouco sobre o papel da igreja evangélica? Ela ocupa esse lugar de sarar as feridas, algo como as igrejas católicas faziam no final da ditadura?

Negra Jaque - A igreja evangélica cumpre esse papel de acolhimento: ‘vem que eu vou resolver a tua vida’.  A gente vive na sociedade do medo. A gente se condiciona porque aquele espaço, aquele pastor, aquele núcleo de pessoas vão resolver todos os meus problemas. Eu terei proteção, vou ter um colo.

A gente tem um problema escancarado de afeto, violento! No nosso país, em função da formação, do extermínio indígena, de sequestro dos africanos para cá, das mulheres que são condicionadas.

A gente tem um problema muito grande de amor pelo outro. E quando tu entras em um espaço, e não é só a igreja, outros espaços fazem isso, a própria criminalidade faz isso, a política. Todo aquele espaço que nos dá um certo acolhimento e um certo bem estar, a sensação de estar protegida neste lugar, a gente vai se aproximar. A gente tem hoje um investimento muito grande porque a religião faz controle populacional. “Então eu estou aqui te oferecendo essas palavras e nesse tempo tu vais viver nessas regras”. 


"A gente tem um problema muito grande de amor pelo outro" / Foto: Katia Marko

BdF RS - A manipulação está em diferentes religiões...

Negra Jaque - E falando de Jesus, a gente fala muito em nossas rodas que ele era um cara tri massa, ele nem é religioso. Jesus era militante, um cara que se dava com todo mundo, dialogava com a grande população pobre, tinha escritos dele, organizava as pessoas, distribuía, fazia trabalho voluntário, circulava entre o povo. Para mim ele era militante. Não religioso. Nem cristão ele era. Inventaram o cristianismo depois que o mataram.

BdF RS - O Morro da Cruz é palco anual da representação da crucificação.

Negra Jaque - Eu sou de uma comunidade que a gente tem a procissão, com todo o processo da crucificação de Cristo. Há várias caravanas, pagam promessa, dramatizam. Daí tu vê, bom gente, a Igreja Católica Apostólica Romana está celebrando a Páscoa e a morte de Jesus. A igreja foi que matou Jesus! Ele foi torturado, crucificado. Não morreu por nós, mas porque ele tinha ideias de liberdade, de igualdade no mundo onde o dinheiro mandava como sempre mandou.

Essas eram suas ideias. Foi crucificado porque ele começou a convencer as pessoas que aquilo podia ser possível, que a gente não deve julgar o outro, que a gente tem que andar em comunhão, com respeito. Que a gente pode partilhar o pão. Ele não era cristão, ele era uma pessoa militante que fazia o bem para a população. A minha comunidade celebra isso.

Eu sempre falo, com a galera na rua, nos bate papos, na rede social: vamos refletir: A Páscoa é um espaço de comunhão, estamos celebrando com a igreja Católica os algozes de Jesus. Essa história está sendo contada errada e a gente está celebrando sempre da mesma forma.

Essa religião celebra a mortalidade de alguém que ela torturou. E hoje se apropria de palavras que foram ditas para o bem estar comum para organizar a sociedade através de um livro, através de regras. 

BdF RS - A periferia é um potente espaço de ebulição e produção. Como isso acontece?

Negra Jaque - Eu venho desse espaço, do Morro da Cruz, um lugar que amo. Na semana passada, por exemplo, eles criaram uma forma de organização comunitária chamada Congresso do Povo, todo mês se reúnem ali para ser debatidos demandas da comunidade. Independente do que acontece na gestão municipal, na gestão estadual, na nacional, a própria comunidade fez o seu próprio Congresso e ali se debate muitas coisas, desde reciclagem dos resíduos eletrônicos até a parte do SUS pediátrica que vão fechar na PUC e que atende a nossa comunidade.

É importante essas células vivas da base comunitária. Para mim toda política do Brasil deveria ser comunitária. O primeiro núcleo de política que temos é a família e a partir disso vem a comunidade. Núcleos como esse acontecem em várias comunidades do Brasil. A ideia é ouvir, ser ouvido e valorizar esse saber que é o saber do povo, saber popular, de quem entende mesmo.

Há também os núcleos artísticos, tem atelier, galpão. Trabalham com a questão da moda. Temos um coletivo muito forte de mulheres. A gente fica pensando, muitas vezes o que faz o olhar da periferia, ah são costureiras, não, as mulheres são estilistas, elas trabalham com construção, produção de peças, reaproveitamento de material.

Quando é comunitário e periférico é costureira, quando é de uma outra zona nobre da cidade, daí é designer, estilista. É esse olhar que precisa ser. Da parte de quem, de quem estamos falando?

Assim como na comunidade, outros núcleos também existem de produção, e estão fervendo, muita coisa está acontecendo. Eu digo que passamos por um período bem difícil de se encontrar politicamente, os smartphones foram responsáveis por essa questão, mas que era o período necessário de consciência do nosso papel, e de que as coisas avançaram, mas não avançaram como deveriam. Então quando a periferia se organiza dessa forma, eu vejo o quanto ela tem poder, ela é autônoma.

BdF RS - Como tu analisas o período que estamos vivendo?

Negra Jaque - Falando de gestão, de política nacional, durante um período a gente precisava mexer no alicerce e preferiu não mexer. Esse alicerce hoje está fazendo a gestão do país inteiro. Não fez reforma política, reforma previdenciária, não fez nada. Trabalharam com pessoas que não estavam de acordo com o projeto de país, pessoas que foram coniventes por 15 anos porque estavam sendo beneficiadas por um projeto de país.

Quem está fazendo a gestão das políticas públicas no Brasil sempre esteve ali. Escolhemos não mexer e agora passamos por esse processo de disputa de poder, da própria população enxergar o que está acontecendo. Aí tem uma grande influência da grande comunicação, a internet vindo enquanto ferramenta, e agora não temos mais a opção de não mexer, porque essas feridas estão abertas.

Estamos em um período de reflexão sobre que caminhos vamos tomar. Acho que não é retrocesso, faz parte do processo de crescimento. Vamos fazer o que a partir de agora?

E foram feitas desse jeito com um alicerce ruim. O país tem uma história de gestores que não pensam na população. Isso é uma característica no mundo, de quem tem super poder. A gente entra em outros espaços, econômico, do machismo no mundo, o quanto as mulheres também ficam numa posição muito violentadas e elas não conseguem esse espaço de decisão. Então é uma característica global. Mas a gente tem que arrumar formas de dentro para fora.


"Estamos em um período de reflexão sobre que caminhos vamos tomar" / Foto: Katia Marko

BdF RS - O atual governo acabou com um conjunto de políticas públicas criadas nos governos populares. Muita gente beneficiada por essas políticas votou em Bolsonaro...

Negra Jaque - Essas populações fizeram parte, mas não tiveram consciência desse processo todo. É uma coisa maluca! Tu é o sujeito da história, mas não sabe da história. É muito complicado, nesse período a gente teve mais poder de consumo, a gente teve consciência do poder de consumo. Isso foi bem aceito pela população, mas essa questão dos direitos é dever do país pensar em uma educação de qualidade, pensar no acesso educacional para todos, mas não foi trabalhado como deveria.


 

Edição: Stela Pastore