Pandemia

Coronavírus expõe mazelas sociais da Índia: habitação, saneamento e informalidade

Trabalho precário, acesso restrito a água e problemas nos setores de saúde e moradia dificultam prevenção da doença

Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia) |

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Centenas de trabalhadores vivem aglomerados entre os depósitos dos mercados de especiarias na Velha Delhi, coração da capital indiana - Praveen S. / Brasil de Fato

Evitar aglomerações e lavar as mãos com água e sabão. Duas orientações simples para prevenir a transmissão do coronavírus estão distantes da realidade de milhões de habitantes da Índia.

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Cerca de 19% de toda a população mundial sem acesso a água potável vive no país, cujos centros urbanos têm como marca registrada a alta densidade populacional – mesmo em tempos de quarentena.

A Índia é apenas o 47º país no ranking dos mais atingidos pela pandemia, mas especialistas alertam que o cenário pode se agravar rapidamente se o governo não tomar medidas drásticas.

Esta semana, o Ministério da Saúde indiano reportou a terceira morte em decorrência do coronavírus, após contabilizar 137 pacientes que testaram positivo para a doença. O Brasil, por exemplo, só registrou a primeira morte ao se aproximar dos 300 casos confirmados.

A fragilidade do sistema de saúde também é motivo de alerta no segundo país mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes. A preocupação é que as condições precárias e desiguais de tratamento resultem em uma taxa de mortalidade maior que em outras regiões do planeta.

Para compreender como as mazelas sociais impactam a prevenção e o controle do coronavírus no país asiático, o Brasil de Fato conversou com o pesquisador VR Raman, mestre em Saúde Pública e integrante da Rede de Recursos de Saúde Pública da Índia. Confira abaixo os principais pontos de atenção levantados pelo especialista.

Isolamento é privilégio

Governantes e autoridades em saúde de vários países vêm sugerindo que empresários fechem suas unidades produtivas, lojas e escritórios e introduzam uma rotina de atividades remotas, em casa. Quando o trabalho a distância é inviável, a orientação é que os empregadores garantam férias remuneradas no período de isolamento ou quarentena.

Vendedores de frutas e comida de rua, faxineiros, motoristas de tuk-tuk: na Índia, quase 400 milhões atuam na informalidade ou são autônomos. O número equivale a 93% da força de trabalho do país, segundo a Central de Sindicatos Indianos (CITU). Como não possuem vínculo formal ou trabalham por conta própria, a maioria deles não têm condições de ficar em casa.

A tendência, segundo Raman, é que os trabalhadores sem registro continuem suas atividades, para garantir o sustento da família, enquanto os empregadores podem se dar ao luxo de permanecer isolados.

Mumbai, a cidade mais populosa da Índia, tem cerca de 300 mil trabalhadores domésticos. A maioria foi dispensada em março, segundo a Organização dos Ajudantes Domésticos da região. 

Shubhangi Jadhav, de 37 anos, é uma delas. "Lavo utensílios domésticos e limpo o chão. Trabalho em quatro casas. Mas, devido ao coronavírus, os donos das casas me pediram para não ir até que a doença acabe. Portanto, não tenho trabalho agora", disse ao portal indiano Newsclick.

A renda mensal dos trabalhadores domésticos na Índia – mesmo os que têm mais de um empregador – costuma ser inferior a 8 mil rúpias, o equivalente a R$ 510,00.

“Se o objetivo é combater o coronavírus, tão importante quanto se higienizar corretamente é estar bem alimentado. E muitos, logo agora, começam a perder seu ganha-pão”, enfatiza Raman. “O governo precisa garantir algum benefício a essa população vulnerável”, aponta.


Cerca de 163 milhões de indianos não têm água limpa para higienizar as mãos / AFP

Aglomerados

As tradicionais ruas de comércio da capital Nova Delhi são estreitas, não possuem calçadas e costumam ser disputadas por pedestres, motos e bicicletas. Muitas delas estão na Velha Delhi, região turística no coração da cidade, conhecida pela venda de especiarias, roupas tradicionais e utensílios domésticos.

Varejistas estimam uma queda de 70% nos rendimentos nas últimas duas semanas por conta da suspensão da entrada de turistas no país. Os vistos foram suspensos até 15 de abril, exceto para quem possui passaporte diplomático.

A diminuição do fluxo de clientes não significa o fim da aglomeração. Os milhares de trabalhadores que atuam como carregadores ou vendedores na Velha Delhi costumam morar no entorno dos mercados, quando não em quartos improvisados entre os depósitos de especiarias.

Falar em trabalho remoto em áreas como essa não faz sentido, lembra Raman. O especialista ressalta que, para quem vive em bairros vulneráveis com alta concentração demográfica, a orientação de permanecer em casa não ajuda em nada na prevenção do vírus.

 “A desigualdade social é um fator que se impõe mais uma vez. As pessoas que vivem praticamente empilhadas em favelas, sobrados alugados e improvisados ou em moradias sociais não estão aptas a manter distância umas das outras”, completa o especialista.

Três das quatro metrópoles mundiais com maior densidade populacional estão na Índia: Nova Delhi, Chennai e Mumbai. Segundo o último censo indiano, 17% da população urbana vive em favelas e tem dificuldade de acessos a serviços básicos. Cerca de 1,8 milhão são trabalhadores sem-teto.

Cozinhar ou lavar as mãos?

Cerca de 163 milhões de indianos não poderão aderir ao método mais fácil de prevenção recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) porque não tem acesso a água limpa.

Essa é uma realidade cada vez mais restrita aos trabalhadores rurais na Índia. Nos grandes centros urbanos, ela até chega à torneira, mas em quantidades insuficientes.

“O governo considera que cada pessoa requer, em média, 150 litros por dia. Nas favelas e nas áreas onde a classe trabalhadora e os sem-teto vivem, cada pessoa tem acesso a menos de 30 litros por dia. Para além de beber, tomar banho e cozinhar, ter que lavar as mãos com frequência com esse volume de água será um grande desafio", lembra o pesquisador VR Raman, que também é responsável pelo setor de políticas da ONG WaterAid na Índia. A organização atua em 15 países e colabora na elaboração de políticas de saneamento para garantir fornecimento de água em regiões vulneráveis.

O especialista acrescenta que milhões de indianos ainda defecam a céu aberto e não têm o hábito de lavar as mãos, mas lembra que ainda não há uma associação direta entre casos de coronavírus e falta de saneamento básico.

Apesar dos US$ 28 bilhões investidos pelo atual governo entre 2015 e 2019 para fornecer água encanada e esgoto, um a cada cinco indianos não têm banheiro em casa.

Regulação do sistema privado

Em 2018, a Índia investiu em saúde cerca de US$ 209 por habitante, o equivalente a R$ 982. No Brasil, o investimento foi de US$ 1.282, o equivalente a R$ 6.025.

O país asiático não possui uma estrutura de atendimento comparável ao Sistema Único de Saúde (SUS). A saúde é considerada uma responsabilidade dos estados, que muitas vezes são incapazes de garantir cobertura em regiões vulneráveis ou isoladas.

Segundo uma pesquisa do Instituto Nacional de Política Pública e Finanças, realizada com moradores de bairros pobres do estado de Delhi, 80% dos entrevistados utilizam a medicina privada e 15% recorrem a curandeiros após a identificação de sintomas.

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A principal dificuldade enfrentada pelo governo, segundo Raman, é garantir que os hospitais privados reportem os casos de coronavírus e garantam atendimento a todos os pacientes.

“A prestação de contas do sistema privado para o sistema público hoje é mínima, considerada a complexidade da situação. Os pacientes que chegam a esses hospitais são, em geral, pobres. Como o governo vai garantir que eles não sejam explorados, e que os casos diagnosticados cheguem à base de dados pública?”, questiona o especialista. 

Nesta quarta-feira (18), o governo indiano ordenou que os hospitais privados reservem leitos para o isolamento de pacientes e pediu que os laboratórios privados realizem testes de coronavírus gratuitamente, sem deixar claro se haverá uma contrapartida financeira. Até então, só os laboratórios públicos estavam autorizados, e havia suspeita de subnotificação por incapacidade de atender a demanda.

O governo também divulgou um protocolo único para manuseio dos corpos dos pacientes com suspeita de coronavírus e enviou um comunicado oficial informando que não há evidência de transmissão comunitária no país – ou seja, foi possível rastrear a origem de todos os casos confirmados.

Além dos 137 pacientes que testaram positivo, outros 5,7 mil pacientes com suspeita de coronavírus estão sendo monitorados na Índia.

Edição: Leandro Melito