Minas Gerais

HUMANIDADE

Artigo | Fé, oração, calamidades e pandemias

Se acreditamos, não podemos rezar/orar e não buscar saídas para esta situação

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
A oração entra como um meio muito valioso de fazer comunhão com o Deus da Vida, ainda que seja em meio a dificuldades - Reprodução

Se você acha que atual pandemia é fruto da “ira de Deus”, um castigo merecido, ou coisa do gênero, então pare a leitura por aqui. Mas se há em você uma pouco de condição para tentar entender outra direção, então continue lendo.

Esta não é a primeira e nem será a última calamidade de grandes proporções que se abate sobre a humanidade. Basta lembrar, entre outras, da “peste” na Europa, do terremoto de Lisboa que matou muita gente dentro de igrejas em incêndios, as duas últimas grandes guerras que mataram muito mais do que esta pandemia irá matar.

Mas é comum, em tempos de crise aguda, recorrer a Deus negligenciando vários fatores. Temos visto renascer aquelas colações absurdas de uma espécie de vingança divina por conta de profanações. Que Deus “todo poderoso” é esse que precisa, para ser Deus, do reconhecimento de meros mortais humanos? E se queremos falar de Deus a partir de Jesus Cristo, pior ainda.

Quem se afirma cristão/ã deveria ler a Bíblia com os olhos de Jesus. Ter, como disse o Apóstolo Paulo para a comunidade dos filipenses: “os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5). Mas qualquer livro, incluindo a Bíblia, pode ser lida a partir de olhos desumanos. Olhos que precisam de “lama” para enxergar, como diz o Evangelho de João lido hoje em muitas denominações cristã.

Ora, a fé não é um ritual de mágica. A fé é uma resposta humana de sentido, isto é, uma experiência que determina o modo como se caminha no mundo a partir da convicção da existência de um Ser que preenche a nossa vida em qualquer condição: na saúde e na tristeza, na dor e na alegria, no sofrimento e na realização.

Assim sendo, ficando apenas com Jesus de Nazaré, se digo ter fé, mas caminho na direção contrária do caminho feito por Ele, então não estou sendo luz, fermento, sinal daquilo que Ele deixou como herança. A eternidade se dá plenamente na morte, mas começa aqui e agora. Portanto, não posso ter fé e não procurar os caminhos necessários para constituir uma vida digna.

E para tanto, preciso de todos os meios disponíveis dados por Deus, à inteligência humana: ciência, medicina e medidas de políticas públicas que possam diminuir o sofrimento que é inerente. Preciso viver na dinâmica da solidariedade, da fraternidade, do amor que é reflexo de Deus.

A oração entra como um meio muito valioso de fazer comunhão com o Deus da Vida, ainda que seja em meio a dificuldades. Por favor, não alimente ilusões. Hoje soube de um bispo que sobrevoou uma cidade com o Santíssimo (corpo de Cristo para os Católicos) para proteger a cidade. Vão dizer: “qual é o problema?”, “toda forma de oração é válida”. Sim, é válida se feita em sintonia com a realidade.

Meu pai morreu antes dos sessenta anos, de hérnia, década de 80, por negligência do sistema de saúde. E hoje, muitos e muitas irão morrer porque medidas não estão sendo tomadas. Se temos fé, não podemos rezar/orar e não buscar saídas para esta situação. Uma igreja cheia, por exemplo, e já aconteceu, pode ser um grande vetor de transmissão do vírus.

Muitas vezes religiosos/as criticam fortemente pessoas que se afirmam ateias, mas temos vistos muitos ateus agir com mais humanidade do que muitos religiosos. Portanto, com calma e paciência, com prudência e sem pânico, vamos enfrentar esta pandemia com muita fé, mas com muita solidariedade. Um forte abraço virtual.

Celso Pinto Carias é doutor em teologia e professor na PUC-Rio.

Edição: Elis Almeida