Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Ameaças, enfrentamentos e destinos comuns

Num mundo de produção necrocapitalista, como regular a interação entre as esferas socioeconômica e microbiológica?

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Teóricos apontam que o capitalismo desencadeia e acentua epidemias através da exploração do meio ambiente e de laboratórios industriais - Foto: Reprodução

* Com a colaboração de Matheus Cervo

Dois dias atrás publiquei aqui um artigo onde sublinhei a improcedência de uma “culpabilização” frontal da China quanto à pandemia de covid-19. Minha motivação era a de reagir aos memes e aos vídeos amadores que proliferavam (e ainda hoje proliferam) em nossas redes sociais, em paralelo ao alastramento do próprio vírus. Esse material midiático estaria disseminando desinformação e preconceito étnico, sustentei, prestando-se, acima de tudo, a uma “captura ideológica” e, nesse contexto, atrapalhando-nos ainda mais no que toca às saídas urgentes que precisamos encontrar.

Meus argumentos foram argumentos formais, de fundo culturalista, atentos, sobretudo, aos efeitos sociais deletérios que esses produtos midiáticos, com seus respectivos processos de circulação, poderiam suscitar.

Ontem, para minha feliz surpresa, recebi o comentário de um aluno. Educadamente, ele me disse:

“Achei superinteressante o texto. Queria comentar algumas coisas que tenho lido porque estou fazendo um relato para o observatório de jornalismo ambiental (...) e acho que pode ser uma forma de contribuir à distância.

Eu realmente acho que essa culpabilização da China é, em parte, racismo e desinformação, mas também não acho que há falta de responsabilidade governamental pela emergência da pandemia. Acho que admitir que o governo chinês é responsável pela emergência de uma questão sanitária, que tem um caráter socioambiental inegável, não é incorrer necessariamente em [xenofobia ou] sinofobia, já que se trata de questionar uma governança que cometeu o erro de capitalização massiva sobre a natureza e os animais.”

Ele mencionou, na sequência, o trecho de um programa telejornalístico de uma emissora internacional que está acompanhando e que teria trazido nova luz ao problema. “Essa matéria”, prosseguiu o estudante, “mostra que o vírus tem uma dimensão sócio-histórica que emerge na década de 1970, quando o governo chinês muda sua produção de alimentos. Nessa época, ocorreu um boom [nas ações de compra-e-venda] de animais silvestres (...) porque era o que as pessoas conseguiam produzir (...). Em 1988, o governo [chinês] decreta que considera a vida silvestre como recurso pertencente ao estado, possibilitando que a prática se tornasse legal. Aí se percebe, conforme [mostra] a matéria, que já estavam acontecendo surtos de SARS e de outros coronavírus, na primeira década do século XXI, por causa dessa prática legalizada. O governo tornou a prática ilegal durante o surto e depois a legalizou de novo, principalmente porque essa indústria tomou uma dimensão econômica enorme nas últimas duas décadas.

Então, na minha opinião, torna-se claro que é necessário ‘culpabilizar’ as escolhas da governança chinesa, mas não em uma dimensão de racismo ambiental. Acho que é importante ‘culpar’ justamente para fazer ver [ou trazer à tona] o que está sendo feito em outros lugares que também criam situações sanitárias e ecossistêmicas insustentáveis.”

Trata-se, é evidente, de um reparo digno de ser feito: para muito além do desnecessário acúmulo de lixo e ruídos midiáticos – com seu bom humor e seus apelos lúdicos, com seu viés ideológico e seus efeitos anestesiantes ou indutores –, há, de fato, que reconhecer responsabilizações políticas. É fundamental, junto disso, estipular distinções entre o âmbito formal (decisório, técnico-jurídico) do Estado e o âmbito “desinstituído” do cidadão comum, do cotidiano e dos costumes chineses.

O julgamento de base, contudo, permanece um tanto inalterado: diante de uma demanda global e de circuitos internacionais de consumo, diante de um ecossistema de trocas globais generalizadas (do turismo, das migrações de mão-de-obra precária, das mercadorias, de moedas e informações em trânsito – dos vírus que encontram aí seus melhores hospedeiros), pode um único governo, seja ele qual for, se responsabilizar, sozinho e integralmente? Num cenário mundializado, como regular a interação entre as esferas socioeconômica e microbiológica, o modo de produção neocapitalista e o substrato natural – o não-humano, as bactérias, os agentes infecciosos?

Os críticos chineses do Coletivo Chuang, por exemplo, falam na necessidade futura de um “naturalismo politizado”, onde se dariam novos arranjos entre empreendimentos transnacionais (a big pharma, as redes de fast food), Estados em crise e atores locais atomizados, em franco desamparo. Donna Haraway, uma importante filósofa norte-americana, num texto de 2015, já defendia que não é mais apropriado falarmos em “espécies”, mas em “forças bióticas” interagentes. Cinco anos atrás ela já vislumbrava o imperativo de estabelecermos “arranjos interespécies” ou “políticas multiespécies”, propondo a viabilização de um parlamento de “ecojustiça” ou algo do tipo. Uma “justiça ambiental”, num termo, entre nós, mais corrente.

As proposições, contudo, não terminam aqui: os teóricos chineses, há pouco citados – recorrendo a um estudo de Robert G. Wallace, Big Farms Make Big Flu, de 2016 –, reconhecem a existência de dois processos através dos quais o capitalismo desencadeia e acentua epidemias: o primeiro, no qual os vírus são gerados dentro de laboratórios industriais submetidos por completo à lógica capitalista; o segundo, no qual os vírus “transbordam” conforme a expansão capitalista e a extração do meio ambiente progridem – os vírus, nesse caso, são “contrabandeados”, “colhidos” de modo indireto, trazidos para o interior das engrenagens do capital global.

Além de vertiginosa, a mutação será planetária, prevê Paul Beatriz Preciado. O filósofo esloveno Slavoj Zizek, por sua vez, reclama poderes executivos à OMS. Nesse sentido, gerir a dimensão necropolítica da moeda, tal como afetada pelo coronavírus ou por outras pragas vindouras – e é certo que elas virão! –, é tarefa que parece transcender a competência de qualquer Estado e nos obriga a reconhecer a todos como pertencentes a uma comunidade única, de ameaças, enfrentamentos e destinos comuns.

* Fabrício Silveira é professor universitário; Matheus Cervo é mestrando de Comunicação; ambos são vinculados ao PPGCom da UFRGS.

 

Referências

COLETIVO CHUANG. Contágio Social. Coronavírus e luta de classes microbiológica na China. São Paulo: Veneta, 2020.

HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom Cultura Científica – Pesquisa, Jornalismo e Arte. Volume Ι Ano 3 – N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705.

PRECIADO, Paul Beatriz. Aprendendo com o vírus. Publicado originalmente no El País, 28/03/2020.

ZIZEK, Slavoj. Coronavírus é um golpe estilo Kill Bill para o capitalismo e pode levar à reinvenção do comunismo. AGB – Campinas Geral, 25/03/2020. Publicado originalmente em Russia Today, em 27 de fevereiro de 2020.

Edição: Marcelo Ferreira