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Coluna

Epidemia de ignorância chega ao pico

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"Sem vacina para intolerância ou tratamento para o autoritarismo, a saída não é o diálogo ou o achatamento da curva com doses generosas de democracia. Agora, só na marra" - Fotos Públicas
Bolsonaro arrotando que a morte faz parte da vida é projeto de genocídio programado e desprezível

Consenso entre os especialistas de todo o mundo, o achatamento da curva de casos e mortes pela covid-19 é a única saída possível para enfrentar a pandemia. Para isso, são sugeridas ou impostas medidas de isolamento social, higiene das mãos e uso de máscaras, que diminuem o contágio, retardam o pico da doença e permitem a organização mínima dos sistemas de saúde para atender casos mais graves. Isso é ciência.

No entanto, no Brasil, outra linha parece estar se inclinando cada vez mais para o alto, sem qualquer intervenção capaz de amenizar seu desenho: a curva da ignorância. Manifestada a partir do presidente da República – que com isso isola e desvaloriza o país ao ponto de torná-lo quase um pária internacional a ser evitado –, ganha reprodução em outros estratos da cadeia de poder e chega até o cidadão comum. Isso é ideologia.

Para sustentar uma visão de mundo baseada na superstição, na ausência de empatia com a dor das pessoas e nas verdades reveladas por uma fé extraviada da razão, a curva da ignorância se alimenta de várias fontes. Algumas são de ordem moral, como a que diminui o perigo da doença, comparando com morbidades em diminutivo e em respostas pessoais consideradas covardes ou, pelo menos, culpadas de sua própria fraqueza em razão de comportamentos pouco viris e competitivos.

Mas a cruzada em favor da morte segue com outras campanhas mais diretas e explícitas. Como a que aposta, com má fé científica, na lógica da inevitabilidade do extermínio natural dos mais fracos, como consequência desejável da conquista da imunidade de rebanho. Ver Bolsonaro arrotando que a morte faz parte da vida é mais que um atentado à inteligência: é um projeto claro de genocídio programado e desprezível.

A parábola de absurdos segue seu caminho para o alto. Propaga curas por medicamentos desenvolvidos para outras enfermidades, inclusive veterinários e detergentes, sem qualquer base científica confiável. Cria uma falsa dicotomia entre a preservação da vida e interesses da economia, jogando a população mais desprotegida numa ciranda macabra, incentivada por carreatas protegidas do vento dos donos de lojinhas que se autodenominam empresários.

Essas bandeiras vão sendo empunhadas por autoridades de todas as áreas e chegam até o novo ministro da saúde, Nelson Teich, que, é bom reconhecer, não é ingênuo e pôs sua cabeça e biografia à disposição de uma pessoa reconhecidamente inconfiável. Visivelmente paralisado, ele se mostra aquém da tarefa de liderar o combate ao novo vírus, se escudando em discursos técnicos que são tão óbvios como pouco mobilizadores. Sua inação é capaz de despertar saudades até do medíocre Mandetta, exterminador orgulhoso do programa Mais Médicos.

Teich não tem o carisma para inspirar a união necessária em seu meio profissional, que dirá entre outros setores. Não tem energia para comandar a guerra e chefiar um esforço coletivo, interministerial e, no limite, nacional. Não tem vocação política para negociar com os diversos segmentos da sociedade, inclusive o setor produtivo. Aceitou o cerco de militares em funções técnicas de seu ministério. Não carrega experiência de gestão do setor público de saúde. Sobretudo, parece não ter compaixão.

Não se trata de demonizar o ministro que acaba de entrar – mesmo que tenha demorado demais para começar a agir e visitar o Amazonas em colapso depois de uma semana no cargo – , mas de entender que ele faz parte de um conjunto de atores manietados pela ideologia negacionista do governo. Se na saúde isso é a mais visível, outras áreas pegam carona na curva da ignorância para explicitar e tornar ainda mais perigosas suas agendas conservadoras e regressivas.

Na educação, o ministro Weintraub mandou para o ar uma campanha publicitária sobre o Enem, apelando para a necessidade de não interromper a formação de novos profissionais. Argumento de má fé, o deseducador privilegia assim parte dos estudantes de elite, que mantiveram sua atividade pedagógica durante o isolamento. Com isso, diminui ainda mais as chances dos jovens que foram afastados do sistema educacional por meses, inclusive das metodologias à distância, para os quais não dispunham de recursos. Sai a meritocracia e entra a pandemiocracia educacional.

No meio ambiente, as ações contra a fiscalização de desmatamento, invasão de territórios demarcados e garimpo ilegal ganharam um duplo reforço. Além de incentivadas por decisões do ministério da área, foi acentuada a perseguição do trabalho de fiscais e de suas chefias. Há uma ligação clara entre essas atitudes e o contágio que já ameaça vários povos indígenas, como tem sido denunciado internacionalmente, inclusive com várias mortes registradas. Uma reedição hedionda do histórico genocídio de povos da floresta por patógenos para os quais não possuem defesa.

Na diplomacia, o alinhamento com os Estados Unidos, hoje o campeão em número de casos e mortes pela doença, tenaz defensor da flexibilização e do discurso inconsequente das mortes inevitáveis, reflete um erro de percepção. São países distintos em termos econômicos, sanitários e com sistemas de saúde muito diferentes. O que os irmana é apenas a estupidez e arrogância dos dois presidentes. Além de equivocada, a atitude gera ainda o isolamento na região. O Brasil é hoje o país a ser evitado por seus vizinhos, sofrendo críticas diretas, entre outros, do Paraguai, Uruguai e Argentina, que fecharam suas fronteiras.

Assinando embaixo do isolamento e da vergonha pelo combate feito com atraso e sem qualidade, o Brasil testa menos que todos os países da América do Sul e é contraditório em matéria de isolamento social, com a divisão entre políticas locais e desorientação do governo federal. Essa situação, que parece refletir apenas um problema interno, é lida pelos vizinhos como sinal de falta de coordenação das ações e, portanto, afasta o país do papel natural de referência em política sanitária consequente para toda a região.

Em termos diplomáticos, o Estado brasileiro reedita sua postura de beligerância com a Venezuela, de forma totalmente extemporânea, buscando liderar um combate que só interessa ao setor petrolífero dos EUA, além de demonstrar uma falta de habilidade diplomática em meio a uma crise mundial de saúde pública. Misto de insensibilidade, delírio ideológico, subserviência e falta de tato. Um programa típico do olavista Ernesto Araújo.

O mesmo método, com maior ou menor evidência, mostra como a pandemia da covid-19 se alastra em todo o governo, gerando oportunidades de aprofundamento do projeto de destruição da democracia brasileira e do Estado social construído nos últimos 30 anos. Como nas ações que fragilizam ainda mais o emprego num contexto de crise extrema, que receberam do governo uma linha de defesa que se dirige em primeiro lugar ao empregador, não ao trabalhador.

 Ou na falta de ação para os produtores de cultura, os primeiros e mais duramente afetados pelo afastamento do contato social. E que serão os últimos a retomar a ordem normal de seu trabalho. Sem falar na insensibilidade com as perdas de algumas das mais importantes personalidades da cultura brasileira, que não ganharam o reconhecimento da secretária da área, Regina Duarte, uma artista com décadas de carreira jogada no lixo da história com direito a humilhações seguidas. Ou na ausência de uma política para as mulheres, duplamente afetadas e expostas ao novo contexto social e econômico, como trabalhadoras e responsáveis pela manutenção de seus lares devastados pela crise.

A curva da ignorância tem método. Depois de chegar ao topo, não terá sua inclinação modificada. O novo normal, sob Bolsonaro, é uma política de terra-arrasada, assentada sobre milhares de mortes evitáveis e a condescendência de um gado inútil, tangido pelo culto à violência, ao preconceito, aos valores da reação e da defesa de privilégios. Tudo o que interessa a ele, no atual momento, é garantir a perpetuação no poder e cacifar a reeleição.

Sem vacina para intolerância ou tratamento para o autoritarismo, a saída não é o diálogo ou o achatamento da curva com doses generosas de democracia. Agora, só na marra. 

Edição: Joana Tavares