Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Como Manter a Esperança

Minha esperança se mantém alimentada pela mais profunda, latente e gritante raiva… Porque não há descanso possível!

Brasil de Fato | Bagé (RS) |
Até quando vidas serão ceifadas em nome da Necropolítica? - Latuff

“Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário” (Paulo Freire)

 

Hoje, 19 de maio de 2020, exatamente 21:36, início este texto que tem por intenção ser uma conversa, um diálogo, um desabafo. Já tinha desligado o computador, satisfeita por ter concluído uma parte importante do meu trabalho de conclusão de curso. Sou graduanda de Filosofia, estou no sétimo semestre, vivendo a incerteza de quando irei me formar, afinal, estamos em meio a pandemia do Coronavírus.

Mas são tempos sombrios, que me desafiam a partilhar minha revolta, minha indignação, minha dor e talvez, me perdoe Freire, minha desesperança. Na manhã de hoje, dentre as muitas notícias que li, duas me doeram na alma e no corpo, a primeira, a repercussão da entrevista da jornalista Glória Maria a Pedro Bial na noite de ontem (18/05/2020), onde relatou uma situação na qual - em suas palavras - sentiu-se “como macaco no zoológico”, sentimento que bem conheço, afinal toda mulher negra, todo homem negro conhece esse sentimento, mesmo aqueles e aquelas que buscam na negação a si mesmo do racismo e dos preconceitos sofridos, no seu mais profundo íntimo sabem do que estou falando, sabem do que Glória falou.

Mas não bastasse, o preconceito que nos humilha, agride, vivemos sob a constante ameaça de morte, ameaça que se concretizou ontem para o menino João Pedro, 14 anos, estudante, assassinado pelo Estado de morte comandado no Rio de Janeiro pelo governador Witzel. E mais uma vez estou eu aqui falando, sofrendo a morte de um jovem negro assassinado pelo Estado do Rio de Janeiro, o Estado que não nos respondeu que mandou matar Marielle, que não respondeu pelo assassinato da menina Agatha, pelo assassinato de Marcus Vinicius, que fuzilou uma família um domingo à tarde, porque parecia suspeita, afinal a negritude é suspeita até mesmo depois de ter a sua inocência provada. Todas essas mortes doem, doem e doem muito porque sei que não serão as últimas, virão outras, afinal esse é o princípio de um Estado de Necropolítica.

Como saber do assassinato de João Pedro e não sentir a dor da sua mãe, da sua família, como não sentir um frio na espinha pensando que amanhã pode ser seu sobrinho, seu filho, seu irmão, seu primo. No Brasil é assassinado um jovem negro a cada 23 minutos. Somos o país onde a polícia aborda com truculência e violência jovens negros por estarem usando máscara, item obrigatório diante dos cuidados frente a Pandemia.

Como ter esperança?

Mães negras geram e dão a luz meninos marcados para morrer... Quantas mães choraram junto a mãe de João Pedro? Quantas mães choraram a morte de seus filhos assassinados pela Pátria Amada Brasil no dia de hoje?

Acredito que enquanto a branquitude brasileira for dormir todas as noites com a consciência tranquila apesar da sombra de morte que ronda a vida da negritude, continuaremos morrendo, pois como outrora é a nossa morte que lhes garante o sono tranquilo. Nossos jovens, jovens negros, pobres e periféricos morrem todos os dias para que os meninos brancos dos condomínios e do asfalto estejam seguros, chamam isso de “guerra as drogas”. Um exemplo, foi a operação realizada no morro do Alemão, no Rio de Janeiro, em 25/05/2020, o Estado genocida de Witzel, interrompe a quarentena para promover um massacre que teve como resultado 13 mortos, no que para especialista, são operações avulsas e pontuais são usadas por grupos da polícia para subir valor de propinas. No entanto, quando faz operações em áreas nobres do Rio não é disparado nenhum tiro, como na Operação Lume, na qual em março de 2019 a Polícia encontrou 117 fuzis M-16 incompletos na casa de amigo do suspeito de atirar em Marielle e Anderson Gomes, as armas estavam numa casa no Méier, na Zona Norte do Rio.

A sombra da morte avança pelas comunidades, periferias e favelas, quando não pela ação ativa do Estado, age pela passividade deste mesmo Estado que frente a uma pandemia, abandona seu povo a própria sorte, porque precisa proteger a economia, com a cínica desculpa de preocupação com o desemprego e a fome, quando alcançamos a marca de 1179 vítimas da Covid-19. Somos o terceiro em números de infectados pelo Coronavírus no mundo, quando estão sendo contabilizados oficialmente apenas as pessoas que manifestam sintomas ou tem contato direto com um infectado que tenha manifestado os sintomas, do contrário, não sabemos quais são os reais números. E nunca saberemos, como não sabemos quantos escravizados chegaram as terras Brasileiras e nem quantos aqui morreram ou morreram na travessia de África até as terras brasileiras, afinal pouco importa. Essas não valem nada… Vidas negras, vidas indígenas, vidas pobres não valem nada, não valiam no passado e continuam a não valer nada no presente, pois como bem definiu o sociólogo Jessé Souza, são a ralé brasileira.

Governos decidem quem vive e quem morre, como vive e como morre. É isso que estamos assistindo passivamente no Brasil, diariamente. Desde que foi confirmada a primeira pessoa contaminada com coronavírus no Brasil acendeu o sinal de alerta sobre os riscos que atingem as comunidades mais pobres e grande parcela da população que vivem em extrema vulnerabilidade, na sua grande maioria parda e negra. Agora somos a grande maioria das vítimas.

Como manter a esperança, se quando alcançamos uma mínima situação de aparente segurança, o Estado nos rouba os sonhos e deixa claro que não nos quer nas universidades. A teimosia na manutenção na data do Enem, nada mais é que a mensagem clara de que Educação, Ensino Superior não é para quem vive nas comunidades, nas favelas, nas periferias e vilas, aos pés dos morros. Não é para quem não tem direito a quarentena e isolamento social, porque sustenta ou é sustentado pelo trabalho nos serviços essências. Voltando a definição de Jessé Souza, a ralé que se vire, estude como puder, de seu jeito, afinal não é interesse do Estado que ela adquira conhecimento, uma formação, quiçá um diploma de curso superior.

Para o educador Mario Sérgio Cortella, a vida é de fato muito curta para ser pequena, e nos questiona: “o que é cidadania plena?” Para Cortella, é uma vida que coletivamente não apequene a própria vida. Ou seja, é necessário que você e eu construamos, juntos, o inédito viável, e lembra o grande pensador da educação, Paulo Freire, é preciso ter esperança para chegar ao inédito viável e ao sonho. Cuidado! Há pessoas que têm esperança do verbo “esperar”. Esse grande educador e filósofo falava da esperança do verbo “esperançar”. Esperar é: “Ah, eu espero que dê certo, espero que aconteça, espero que resolva”. Esperançar é ir atrás, é não desistir. Esperançar é ser capaz de buscar o que é viável para fazer o inédito. Esperançar significa não se conformar. Quando eu coloco água em um copo, ela se conforma ao recipiente e está aprisionada nele. É preciso que você e eu sejamos capazes de transbordar. A esperança permite que você transborde, isto é, vá além da borda. A ambição, diferentemente da ganância, faz com que você e eu não nos conformemos [Trecho retirado do livro "Educação e esperança"].

Como manter a esperança?

Freire e Cortella, Esperançando, esperançando do verbo esperançar, porém esperançar como potência alimentada pela profunda raiva. É a raiva que alimenta as esperanças da negritude e nos impulsiona a resistir, reexistir e fazer revolução diariamente, quando nos negamos a morrer inertes, frente ao genocídio perpetrado pela Pátria Amada Brasil.

A escritora negra Audre Lord escreveu sobre como as mulheres respondem ao racismo, em texto que faz parte do livro Sister Outsider:

“Mulheres respondendo ao racismo. Minha resposta ao racismo é raiva. Eu vivi com raiva, a ignorando, me alimentado dela, aprendendo a usá-la antes de ela destruir minhas visões, durante a maior parte da minha vida. Uma vez respondi em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva me ensinou nada. Seu medo da raiva irá te ensinar nada, também. Mulheres respondendo ao racismo significa mulheres respondendo à raiva; a raiva da exclusão do privilégio inquestionável, de distorções raciais, do silêncio, maltrato, estereótipo, defensividade, errar nomes, traição e cooptação. Minha raiva é uma resposta a atitudes racistas e a ações e presunções que surgem dessas atitudes. Se a forma como você lida com outras mulheres reflete essas atitudes, então minha raiva e seus medos que a acompanham são focos que podem ser usados para o crescimento do mesmo modo que eu usei ao aprender a expressar raiva para o meu crescimento. Mas para cirurgia corretiva, não culpa. Culpa e defensividade são tijolos num muro contra o qual todas, todos e todes nós nos debatemos; eles não servem aos nossos futuros.”

Minha esperança se mantém alimentada pela mais profunda, latente e gritante raiva… Porque não há descanso possível!

 


* Feminista negra, Graduanda em Filosofia na UFPel, Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

 

Referências:

https://ponte.org/o-massacre-que-interrompeu-a-quarentena-no-complexo-do-alemao/

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/03/12/policia-encontra-117-fuzis-m-16-na-casa-de-suspeito-de-atirar-em-marielle-e-anderson-gomes.ghtml

http://www.mscortella.com.br/o-verbo-esperancar-4a

https://www.geledes.org.br/os-usos-da-raiva-mulheres-respondendo-ao-racismo/

Edição: Marcos Corbari