Minas Gerais

Opinião

Artigo | Era bom demais pra ser verdade!

A vida entre turbilhão de séries, deslocamentos de posições políticas na TV e a continuidade do domínio da Casa Grande

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
"Quando o prodígio é perguntado onde se encontrava no espectro das candidaturas a presidente, ele se mostra ainda no conforto da Casa Grande e afirma: de Ciro a Amoedo" - Reprodução/Roda Viva

Esses dias, dessa quarentena, cada um vive a seu modo e cada um certamente tem uma particularidade que julga mais particular, risos. Mas, pela a sua extensão temporal, a rotina vai quase necessariamente se tornando repetitiva. Afinal são muiiiitos dias.  

 A certa altura me dei conta de que estava desinformado com as séries. São os filhos, os amigos dos filhos, os amigos e pacientes, a introduzir questões trazidas por elas, uma certa lógica... e até mesmo interferindo nos padrões, nos modos de vida. Pensei: preciso, se não saber de todas elas, mas ter uma noção do que se trata. Tirei o fim de semana para essa atualização. Uma... outra... Aí se foi sábado, domingo, e segunda-feira, que sempre me dedico a estudar, me apanho embrenhado nesse coquetel e já um pouco desligado da realidade.

Já caminhava pra meia noite e nem o whatsapp via mais, tamanha sideração naquele universo. Lembrei que “saco vazio não para de pé”, dei um pause e olhei pro celular. Entre um mar de mensagens, naquela infinidade dos grupos, percebo que há uma mensagem da Dina. Dina é minha amiga do tempo do ME (Movimento Estudantil), ela da Centelha eu da Libelu, mas relações amorosas de amigos nos aproximaram. Nunca largamos de todo um ao outro, mas mensagem de Dina não é por uma coisa qualquer.

Ela perguntava: você viu o Roda Viva? Fiquei calado, afinal não queria me denunciar. Eu nem estava muito de bem com esse programa. Na outra semana, com o Ministro do STF Dias Toffoli, aos 15 minutos do programa, o jornalista teria dito a ele, como costuma dizer o analista: “vamos ficar por hoje?”. Sujeito escorregadio, sem pudor de deixar transparecer que está sendo evasivo e eventualmente falso. 

Aí fui me haver com outras mensagens fora de grupos e vejo que são quatro, os que querem falar do dito programa. Escolho o Edu para dizer que eu não o assisti. Ele, jovem, esperto, na hora já me manda o link do Youtube, com o registro da entrevista. Isso já passa de meia noite. Terça-feira, dia seguinte, atendo o dia todo, mas tinha que ouvir. Coloquei pra rodar e entendi de imediato porque tamanho alvoroço, o menino de 37 milhões de seguidores admitia que o impeachment da presidenta Dilma, para o qual ele havia trabalhado, foi golpe e tecia seu “mea culpa.”

A essa altura, eu já era tomado pelos braços de Morfeu, e, mesmo sem terminar toda a entrevista, dormi o sono dos justos e acordei com o sentimento de que o que parecia que faltava não falta mais! Isto é, até os engomadinhos, bem-postos, aqueles com inteligência (pois existem também eles por lá), estavam admitindo que o impeachment foi um golpe. Era uma virada e tanto e havia se produzido um objeto de comunicação que poderia servir para furar a bolha. Um material que meus sobrinhos recalcitrantes iriam prestar atenção. Enfim, era o achado, mas chegou meu intervalo de almoço e eu precisava ver/ouvir o vídeo, para além das falas introdutórias. Assim o fiz!

Aí me dou conta de que era bom demais pra ser verdade. Quando aquele menino prodígio é perguntado onde se encontrava no espectro das candidaturas a presidente, ele se mostra ainda no conforto da Casa Grande e afirma: de Ciro a Amoedo. O menino, Felipe Neto, foi enfático na sua fala. Admite que fez um grande deslocamento e está apto a continuar a se deslocar. Quem sabe com os tempos duros em que vivemos, com a morte nos espreitando na esquina, esse menino possa enxergar o colorido da pele da maior parte dos que morreram e vão morrer, e compreender que esses lugares difíceis em que vivem hoje é o que lhes foi reservado pela Casa Grande. É essa mesma Casa Grande que consente esse espectro de candidatos, que trazem a garantia de que não ameaçam a ordem das coisas dos últimos 500 anos. Isto é, a garantia de que o espectro desses senhores é que continuará a dizer pra negrada “reconhecer o seu lugar.”

Milton Bicalho é psicólogo clínico, mestre em psicologia e ex-presidente do CRP-MG.

Edição: Joana Tavares