Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | O Sinhô e a Sinhá

A perversidade persiste na banalização das violências sofridas pelas populações ditas minorias

Brasil de Fato | Bagé (RS) |
Arte digital sobre foto do menino Miguel, assassinado pela omissão de uma "sinhá" - Reprodução

"Ela confiava os filhos dela a mim e a minha mãe. No momento em que confiei meu filho a ela, infelizmente ela não teve paciência para cuidar, para tirar [do elevador]. Eu sei, eu não nego para ninguém: meu filho era uma criança um pouco teimosa, queria ser dono de si e tudo mais. Mas assim, é criança. Era criança", disse Mirtes.

 

São tempos sombrios, tempos de dor, de lágrimas...

Os tempos de cativeiro ficaram para trás... Aqueles e aquelas que vieram antes de nós romperam as correntes, incendiaram senzalas e engenhos... Abandonaram velhos galpões... Mas a opressão, a alienação de nossas origens, a violência sofrida não sai de nós... Nos acompanha geração pós geração... Só conhece a dor da chibata quem foi escravizado, escravizada, essa dor perpassa nossa alma e resiste no DNA negro!

Há menos de um mês, estava frente ao computador desabafando a dor da morte do menino João Pedro, assassinado pela polícia, em casa, baleado pelas costas.... Chorei a dor de João Pedro, chorei exausta por tantas mortes, tanta dor, chorei porque a cada novo boletim diário sobre o coronavírus no Brasil o número de mortos não para de aumentar, e na sua maioria são homens e mulheres, negros e negras, indígenas e pobres de cores e etnias que morrem, meu povo... Chorei porque não posso ser indiferente a morte de um jovem negro a cada 23 minutos... Senti raiva e converti minha raiva em palavras, em desabafo.

E agora, diante da morte do menino Miguel, passa um filme na minha cabeça, me vem inúmeras lembranças da infância de criança negra filha de pais empregados... Como esquecer o olhar dos patrões para nossos pais, um olhar de quem se coloca com superioridade... Olhar do patrão branco para empregada preta, para o empregado preto é diferente... Demorei a entender porque a condição de empregados dos meus pais sempre me incomodou tanto... Os patrões eram bons, pagavam direitinho, respeitavam os direitos trabalhistas, obrigatórios claro, muitos me davam presentes, deixavam eu brincar com as suas crianças... Mas havia algo no olhar que sempre me incomodou, algo que deixava claro que havia diferença entre nós e eles, e que essa diferença precisava sem mantida.

O tempo passou, comecei a trabalhar e com isso a compreender o que aquele olhar queria deixar claro... A diferença entre eu e eles... Olhar de Sinhô e de Sinhá!

Fala-se muito no Brasil sobre a figura do capitão do mato, mas muito pouco falasse sobre os Sinhôs e as Sinhás, uma herança do período escravocrata brasileiro ainda muito presente na sociedade brasileira, evidenciada de maneira escancarada nesse momento de isolamento social, em atitudes como do prefeito de Belém-PA, que incluiu as empregadas domésticas nos serviços essências para atender um pedido da elite.

Entre as primeiras vítimas brasileiras da Covid-19, a qual considero a vítima número zero, foi uma empregada doméstica de 63 anos que trabalhava em um apartamento no Alto Leblon, bairro da zona sul do Rio que tem o metro quadrado mais valorizado do país. Ali ela trabalhou como empregada doméstica por mais de dez anos, até 16/03/2020, quando apresentou os primeiros sintomas do coronavírus e morreu no dia seguinte. A patroa voltara de viagem recentemente da Itália, país que já registrava na época o maior número de mortes pela doença, e aguardava o resultado do exame quando a empregada chegou ao trabalho no domingo 15/03/2020. A patroa não se preocupou que estava colocando a vida da empregada em risco.

Quem eram as Sinhás e Sinhôs de ontem?

Sinhá era a forma com a qual os escravizados e as escravizadas designavam a senhora, a patroa. Forma feminina de sinhô, "senhor". Não se pode negar que este país foi “construído” pelos senhores de escravos e suas distintas senhoras, pessoas muito religiosas... O que é muito valorizado no Brasil afinal, quem não admira as belas Igrejas e demais construções do período colonial, e aqui cabe ressaltar que esses homens e mulheres de “boa alma” eram profundamente cristãos, cristãos católicos, o que nos permite conhecer os sobrenomes de algumas de suas famílias por suas generosas doações às Igrejas e obras de caridade, por meio de seus sobrenomes gravados em vitrais e em plaquinhas douradas em bancos e outros pertences das Igrejas.

Um outo elemento que considero importante comentar sobre os senhores e senhoras de escravos é que eles tinham imenso orgulho de ostentar em uma mão um terço e na outra um chicote, ou como chamamos aqui no RS um rebenque ou relho. Essas valorosas famílias fizeram fortuna, alicerçaram status social, poder econômico e político, e hoje são famílias que se apresentam como tradicionais, construídas a partir da exploração e morte de pessoas negras e indígenas. Essas boas almas tinham até manual para lidar com seus “escravos”. Vou citar apenas um trecho de um manual  aqui:

Problema: Punir mulheres sem revoltar os homens. Solução: Nunca as açoitar em público. O melhor era bater nelas dentro de casa, longe da ira masculina. Os “machos”, porém, sofriam castigo exemplar: convocava-se a escravaria, o infrator era colocado numa carroça e chicoteado à exaustão. Em seguida, os senhores passavam pimenta, sal e limão nas feridas para aumentar a dor e evitar pústulas ou inflamações.

O passado escravocrata brasileiro está implícito em todas as relações estabelecidas no país, sejam elas no âmbito privado ou público, muitas famílias ainda se comportam como senhores e senhoras de seus empregados e,  hoje, são famílias poderosas que comandam a política e a economia em muitos estados brasileiros, como no estado de Pernambuco, parece ser a família tradicional de Sari Corte Real, esposa do prefeito do município de Tamandaré, que não podia dispensar a empregada para ficar em isolamento social, afinal quem iria passear com o cachorro da sinhá.

Na casa da sinhá Sari trabalhavam duas mulheres, Mirtes e a mãe se revezavam no trabalho. Com isso, era a avó quem ficava com Miguel no dia em que a mãe precisava trabalhar ou em um hotelzinho, que não estava funcionando devido à pandemia. No dia do “acidente”, a avó precisava buscar uma receita para medicação e resolver questões no banco. Como já fizera outras vezes, Mirtes optou por levar o filho consigo ao trabalho. Miguel havia passado a manhã brincando com a filha dos patrões. Era preciso descer com o cachorro de estimação dos patrões e ela avisou às crianças que nenhuma delas iria junto. "Eu disse que eles não iam descer comigo porque estavam aperreando. Se eles se comportassem, eles passeavam mais tarde", recordou.

Mirtes deixou o filho Miguel aos cuidados da patroa, afinal o menino estava brincando com a filha dela, imaginou que ela cuidaria das crianças. Ledo engano. Ela cuidou, ela olhou a filha dela... Afinal, há diferença entre nós e eles, entre o filho da empregada e a filha da patroa... A olhar, o cuidado revela a diferença, o perverso descaso.

Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, caiu do 9º andar, depois de ser deixado por Sari sozinho no elevador enquanto a mãe passeava com o cachorro da madame, da sinhá. E isso não foi simplesmente um acidente, uma fatalidade, foi descaso, negligência de quem não presa pela vida do subalterno, da empregada, de quem olha com diferença para os outros. A sinhá chegou a ser presa em flagrante, mas pagou fiança de R$ 20 mil e foi liberada. E assim, como outrora a vida do escravizado, da escravizada não valia nada ou muito pouco, a vida do empregado, da empregada também não vale, afinal como também descreve o sociólogo Jessé Souza, é a ralé brasileira. Logo, contrata-se novas empregadas.

A perversidade dos Sinhôs e Sinhás persiste, nos acompanha geração pós geração, está expressa no elevador para empregados, necessidades de ostentar empregados e empregadas domésticas para fazer serviços para os quais se consideram nobres de mais para realizar. Na não aceitação das cotas raciais, na banalização das violências sofridas pelas populações negras, indígenas, pobres, e demais populações ditas minorias. E em tantas e tantas situações cotidianas de constrangimento a empregados e empregadas nas mais diversas áreas, que vão desde ao pagamento de salários miseráveis a negação de direitos trabalhistas e condições dignas de trabalho.

 

“Vão as mães chorar seus filhos / Ruas, praças e favelas / Operárias vêm nos trilhos / Meninas pelas vielas / Manhã cedo, apressadas / A cidade ainda dorme / Diaristas, empregadas / Uniformes nos conformes...” (Trecho da música Josefinas e Marias, Pedro Munhoz)

 

*Feminista negra, Graduanda em Filosofia na UFPel, Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)


Fontes:

https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm

https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/04/meu-rosto-estaria-estampado-diz-mae-de-menino-que-morreu-ao-cair-de-predio-ao-identificar-primeira-dama-de-tamandare-como-patroa.ghtml?utm_campaign=g1&utm_content=post&utm_medium=social&utm_source=facebook&fbclid=IwAR2AA-AqAQ5OO247Wb3VLgKXF0RpL-pKwoY3DL74Hp0Yh6A9mm1zksgSp7E

 

 

Edição: Marcos Corbari