Minas Gerais

Coluna

Uma sensação de fracasso

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Há uma coleção de equívocos, em todo o mundo, mas com mais força no Brasil, que aponta a falha da expectativa de que a humanidade caminhava para seu aprimoramento - Ozan KOSE/AFP
Se sairemos dessa pandemia melhores ou piores, depende do que estamos fazendo hoje

Muita gente tem se esforçado para imaginar como o mundo sairá da experiência da pandemia. Há os que acreditam que seremos, por força das circunstâncias, levados a exercitar virtudes como a solidariedade, o respeito à natureza e a valorização do conhecimento. Outros, menos confiantes, anteveem um cenário de maior individualismo consumista, discriminação e aprofundamento das injustiças. Nos dois casos, o que parece certo é que são todas elas atitudes humanas. A crise não muda a realidade, apenas torna mais extremos seus limites.

No entanto, talvez o grande sentimento que já toma conta de todos é que, antes mesmo do dia seguinte, já vivemos a derrocada do desafio dos nossos tristes dias. Não precisamos esperar que se encerre a pandemia, seja lá qual for o desfecho, para cravar uma consequência já atuante e profundamente aterradora para a humanidade: fracassamos. Há uma coleção de equívocos, em todo o mundo, mas com mais força no Brasil, que aponta a falha da expectativa de que a humanidade caminhava para seu aprimoramento.

Fracassamos em construir uma estratégia universal de combate a um problema que não reconhece fronteiras. Fracassamos em dividir a situação em aspectos sanitários e econômicos, sem dar conta que se trata de série de eventos interligados. Fracassamos na comunicação verdadeira dos fatos, o que gerou comportamentos irresponsáveis e egoístas. A desmedida confiança que tudo seria passageiro evidenciou a falência da expectativa orgulhosa de uma espécie incapaz de se ver parte do todo, julgando-se escolhida dos deuses ou do acaso.

A essas questões de natureza mais ampla, se somam outros fracassos, igualmente terríveis, que se localizam na escala das respostas técnicas, sociais e políticas para enfrentar o vírus. A ganância dos negócios que impediu uma produção e distribuição equitativa de insumos, sem falar na porta aberta à corrupção hedionda. A falta de coordenação dos países em organizar ações equilibradas e cooperativas, acentuando divisões prévias. A incapacidade de gerar um sentimento de unidade entre a população. A disparidade de investimentos em ações em defesa da vida das pessoas mais vulneráveis.

A história da humanidade parecia indicar, depois de muitos episódios de crises mundiais por causa de guerras, doenças e catástrofes, que havia chegado um tempo em que a experiência de nossas fragilidades havia gerado a possibilidade de reação. Pela primeira vez, além do conhecimento científico e dos exemplos históricos considerados pela razão, as pessoas traziam em si um conjunto de realizações significativas com que contar. É claro que se mantinham vários problemas, como a miséria, a violência e a injustiça, mas tudo indicava que frente a um inimigo comum, estavam dadas as condições de reação virtuosa e planetária. A pandemia mostrou que não.

O que tem se manifestado como mais uma demonstração da persistência da imaturidade da espécie humana, se mostra ainda mais dramaticamente no Brasil. Por aqui, a situação política, social e econômica extremou os limites da incompetência civilizacional. O país dispara para ser o mais afetado pela doença, tem dado respostas pulverizadas e tateantes, se isolou no conjunto das ações científicas das outras nações e, com a covid-19, jogou uma luz cegante sobre a desigualdade social. Adoecemos mais, morremos mais. E morrem mais os pobres, negros e periféricos.

O que se esperava, naquela chave otimista do progresso da humanidade, é que a razão, a política e a ética comandassem o combate à doença. A razão foi escanteada por um misto de ignorância e ambição; a política e produção foram corrompidas pela força dos interesses particulares que descartam parte das pessoas como inúteis; a ética perdeu seu valor de universalidade possível para fortalecer propostas de exclusão e hierarquia entre as pessoas.

A própria ideia de um isolamento vertical, como chegou a ser defendida, é um signo geométrico plano dessa moral da divisão social e da necropolítica. Se um dia a defesa da vida validava toda forma de política – qualquer que fosse sua inspiração – agora vige o princípio de apenas algumas vidas valem a pena. Não é preciso defender a vida de todos, mas matar as pessoas certas para que a vida de quem importa tenha mais chances de prosperar.

Não há uma voz – individual ou coletiva – que seja ouvida acima de todas as outras. Não há lideranças que iniciem uma linha de ação que tenha consequência em todo o trajeto das medidas necessárias. Não existe uma política que unifique as atitudes nos diferentes âmbitos de poder. Não são visíveis estruturas coletivas de busca de soluções e implementação de ações nas áreas sanitária, econômica, educacional, entre outras. Um vozerio confuso disputa a cena e impede qualquer atuação harmônica.

O caso de Minas Gerais é paradigmático nessa estratégia da fuga à responsabilidade. O governador do estado, Romeu Zema, mentiu seguidamente, minorando a gravidade da doença (chegou a dizer que o vírus precisava passear) economizando testes, que são indicadores não apenas da circulação do agente, mas de ações de controle. Ou seja, quanto mais testes, mais doentes identificados e mais trabalho pela frente. O que instiga os sérios a agir, amedronta os esquivos. Diferentemente do que tem dito Zema, o estado foi o quinto mais aquinhoado com exames enviados pelo governo federal. 

Mas a covardia gerencial e impulso a inação foi adiante, saindo dos laboratórios para chegar aos leitos para internar os doentes. O governador tem adiado a abertura de estruturas de atendimento, como o hospital de campanha construído com dinheiro da sociedade, desconhecendo frontalmente a necessidade manter capacidade de atendimento antes de a necessidade urgente se apresentar. Leitos de UTI não são produtos just in time. Enquanto regiões esgotam sua capacidade e as filas da morte começam a ser formadas, ele economiza na preservação de vidas.  

Na área da educação, o governo de Minas Gerais abriu frente de confronto com os professores, no momento em que união é fundamental, estabeleceu unilateralmente um projeto de ensino tutorado que chegou cheio de falhas técnicas. Além disso, se mostrou incapaz de garantir a equidade, acentuando a divisão entre alunos de primeira e segunda classe, o que joga para frente a destruição da meritocracia que o governador tanto preza.

Zema tem a irritante postura do líder que não assume seu papel para se se colocar sempre como objeto da ação do outro. Foi defensor de primeira hora de uso de protocolos de medicamentos duvidosos e do bolsonarismo laissez-faire econômico, para depois ameaçar com fechamento radical (mesmo assim sem a coragem de assumir e jogando a bola para os prefeitos). Em vez de propor, se desculpa. No lugar de assumir responsabilidades, se esquiva. Para se preservar de críticas, pede anistia prévia. Abre mão de seu papel de mandatário para se posicionar como linha de comando da atitude dos outros. Se algo der errado, não sofre, transmite a culpa.

No entanto, a sensação de fracasso é ainda mais ampla e todos têm sua cota. Quando olhamos em volta não enxergamos o raio ordenador que oriente a necessidade de agir nos vários campos abertos pelas crises sanitária, econômica, social e política. Padecemos de um sintoma grave da pandemia do coronavírus: a impressão que tudo é grande demais para nossas atitudes. O que não deve nos impedir de agir, na medida do alcance de nossos braços. Há um imperativo moral que mobiliza as consciências do país para barrar o fascismo, mas que pode e deve conviver com as atitudes de humanização de um mundo tomado pelo sofrimento. 

Não sabemos se vamos sair dessa. Mas certamente não sairemos iguais. Se melhores ou piores, não precisamos esperar para responder: depende do que estamos fazendo hoje, não do que as consciências surradas farão depois, se é que vai haver depois.

Edição: Joana Tavares