Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Sem adesão de arrependidos e omissos não tiraremos Bolsonaro, diz cientista político

Para Benedito Tadeu César, todos os setores da sociedade e partidos devem se unir para restabelecer a democracia

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Benedito destaca a Virada pela Democracia, nos dias 4 e 5 de julho, do Movimento #BrasilPelaDemocracia #BrasilPelaVida
Benedito destaca a Virada pela Democracia, nos dias 4 e 5 de julho, do Movimento #BrasilPelaDemocracia #BrasilPelaVida - Divulgação

Os últimos quatro anos têm sido de derrotas para a democracia mas, apesar de tantas perdas, o cientista político Benedito Tadeu César não esmorece. Lutou contra o golpe parlamentar de 2016, o ataque aos direitos no período Temer, as sentenças alimentadas por convicções e não provas, as perseguições políticas, a eleição de Bolsonaro e o caos político que vive o Brasil desde então.

Com parceiros, fundou o Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito que, agora, une-se ao Movimento #BrasilPelaDemocracia #BrasilPelaVida. Autor da primeira dissertação acadêmica sobre as torcidas organizadas no Brasil – Os Gaviões da Fiel e a águia do capitalismo ou o duelo, defendida na Unicamp – doutorou-se em ciências sociais com uma tese sobre as relações do PT com a democracia.

Nesta conversa com Brasil de Fato RS, Benedito discorre sobre sua proposta de frente, Bolsonaro, opinião pública, mídia, arrependidos e outros assuntos. Embora lamentando a tragédia em curso, ele se confessa otimista.

Brasil de Fato RS - O Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito, do qual você é um dos fundadores, está se unindo a mais de 70 organizações da sociedade civil (*) e formando o movimento nacional #Brasil pela Democracia #Brasil pela Vida. Este é o caminho: a junção de várias iniciativas numa só, com maior poder de atuação e mobilização?

Benedito Tadeu César - Todos os setores da sociedade civil e os partidos políticos devem se unir para restabelecer a democracia, tanto no Brasil como no mundo, pois ela corre sério perigo. Estamos vivendo um avanço do que alguns autores estão chamando de uma “democracia iliberal”, na qual as instituições democráticas, apesar de continuarem existindo e funcionando, estão debilitadas e sendo corroídas por dentro.

A união de todas as forças políticas, sejam de esquerda, de centro e de direita, é urgente e não implica que cada uma tenha que deixar suas bandeiras específicas, nem que as diferenças sejam anuladas. No entanto, quero deixar claro que quanto mais movimentos houver melhor será, mesmo que se organizem descentralizadamente.

BdFRS - O Comitê surgiu em 2016 na antevéspera do golpe que acabou se consumando. De lá para cá, a ideia de democracia sofreu vários reveses, ao ponto que é possível dizer que estamos ainda pior do que no imediato pós-golpe. Como você avalia essa situação?

Benedito - Sem dúvida, a situação política, econômica, social e, agora, sanitária tem se agravado cada vez mais no Brasil desde o golpe ou, para sermos mais precisos, desde que setores do Judiciário e do MPF passaram a agir politicamente e que as manifestações populares e a opinião pública passaram a ser manipuladas pelas grandes redes de comunicação social. Hoje, assistimos ao desmonte do incipiente Estado de Bem-Estar Social que começava a tomar corpo no país. As ações do governo Bolsonaro, ainda que pareçam desencontradas e improvisadas, têm uma lógica de fundo que as orientam, que é a do desmonte das políticas sociais, da desindustrialização e da desnacionalização da economia e da regressão nos costumes e na moral individual e coletiva. Cabe aos setores organizados da sociedade resistir. Foi esse o mote da criação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito, em 2016, e é esse o objetivo que o alimenta até hoje e é ele também o que inspira o Movimento #BrasilPelaDemocracia #BrasilPelaVida.

BdFRS - O que será a Virada pela Democracia, onde e quando acontecerá?

Benedito - Será um conjunto de atividades, incluindo debates, apresentações musicais, saraus e muitas outras, todas voltadas para a defesa da democracia e a divulgação do Movimento. Acontecerá em todo o país agora, nos dias 4 e 5 de julho, de forma descentralizada. Aqui no Rio Grande do Sul, já hoje, sexta-feira (03), a partir das 19h, com transmissão pelo YouTube e Facebook, haverá uma mesa virtual para debater a democracia e as formas para a sua reconstrução no Brasil, com a participação da cientista política Maria Victoria Benevides.

BdFRS - A campanha reúne entidades vinculadas à defesa dos trabalhadores, dos direitos humanos e sociais, do meio ambiente, das minorias, das ciências, da cultura, do jornalismo... Quem está faltando se formos considerar a oposição do mandato Bolsonaro?

Benedito - O engajamento se dá por meios das entidades e movimentos e deverá ocorrer de forma crescente. Não estão engajados no movimento os partidos políticos e nem as suas lideranças. Foi uma decisão das entidades organizadoras não convidar os partidos políticos, não por desprezá-los, mas para assegurar a maior pluralidade, diversidade e amplitude possível na sua composição. Sua presença, neste primeiro momento, poderia dificultar a adesão de entidades.

“A preocupação dos partidos com as eleições dificulta a unificação”

BdFRS - Este é um momento que vários movimentos, partidos e organizações se movem pra tirar Bolsonaro, mas há dificuldades para reunir todos os insatisfeitos, o que acontece à direita e à esquerda. O que propõe diante dessa dificuldade?

Benedito - Uma das maiores dificuldades é a advinda da preocupação dos partidos políticos de demarcar seus espaços e suas bandeiras e de ter como metas imediatas as conquistas eleitorais. É uma atitude correta e legítima em tempos de normalidade democrática, mas torna-se um empecilho quando se trata de unir forças para a conquista de um objetivo amplo. A preocupação dos partidos com as eleições deste ano e com as gerais de 2022 dificulta a unificação. O Movimento não se alinha a nenhum partido mas não repudia nenhum, seja de esquerda, de centro ou direita, desde que democrata. Esta também foi a postura adotada pelo Movimento quando não incorporou ao seu Termo de Referência a palavra de ordem “Fora Bolsonaro!” Posso afirmar que o “Fora Bolsonaro” tornaria difícil a participação da CNBB, da OAB, da SBPC e de várias outras entidades de enorme representatividade.

“Acolhimento não significa perdão ou esquecimento”

BdFRS - Um obstáculo que parece bastante óbvio é o acolhimento dos chamados “arrependidos”. Muitos tiveram uma postura difícil de digerir aderindo ao golpismo em 2016 e apoiando um candidato fascista em 2018. Além disso, o arrependimento de algumas figuras públicas parece pela metade, mais superficial do que tenta demonstrar...

Benedito - Acolhimento não significa perdão ou esquecimento. Em momentos de crise e de transição, não se escolhe parceiros. Veja o que aconteceu em 1984, durante as Diretas Já. Ex-integrantes dos partidos que sustentaram a ditadura civil-militar foram aceitos nos mesmos palanques Brasil afora com os mais autênticos defensores da democracia. Ulysses Guimarães sabia que Tancredo Neves articulava, pelas costas, a derrota da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições diretas. Nem por isso, desprezou o apoio de Tancredo à campanha, assim como o apoio dos políticos da ex-Arena e ex-PDS. O que faltou, no restabelecimento da democracia, com a Constituição de 1988, foi o acerto de contas democrático e dentro da lei, com os que compactuaram com a ditadura e suas falcatruas. Isso não quer dizer que a mesma omissão tenha que ocorrer agora.

BdFRS - Qual sua opinião sobre a formação de uma grande frente democrática, unindo todos os descontentes com Bolsonaro, para removê-lo do poder e, a partir disso, organizar uma solução com as esquerdas que privilegie a questão social?

Benedito - Precisamos nos empenhar para construir esta frente. Tenho me empenhado nisso desde 2016. A remoção de Bolsonaro, dos militares desvairados que o acompanham e sustentam e a supressão das políticas ultraliberais adotadas desde Temer e agora aprofundadas, é urgente. Será uma tarefa árdua e que encontrará enorme dificuldade para se concretizar.

Tenho afirmado que nos encontramos em uma encalacrada. Enormes parcelas das elites políticas e econômicas brasileiras e o Departamento de Estado dos EUA se uniram para retirar o PT do poder, abortar seu projeto de nação e, se possível, exterminar o partido e seus líderes, principalmente Lula. Tiveram êxito parcial, com a deposição de Dilma, a prisão de Lula e a vitória de Bolsonaro, que foi uma solução de desespero, porque apostavam em Alckmin. Parcial porque o PT continua sendo o maior partido político brasileiro.

A retirada de Bolsonaro e de sua trupe, se ocorrer sem que esteja sob o controle das elites, pode trazer de volta o PT, ou provocar a interrupção do desmonte ora em curso. Por esse motivo o TSE não cassa a chapa Bolsonaro/Mourão, mesmo as evidências de que ocorreu fraude eleitoral, abuso de poder econômico e a disseminação de fake news, pois teriam que ser convocadas novas eleições e Haddad ou Lula poderiam vencê-las. Por esse motivo não ocorre o impeachment, pois Mourão pode ter fantasias de que será capaz de governar sozinho, apenas com os malucos militares que o acompanham. Caberá à sociedade civil organizada virar o jogo e isso só será possível com a construção de um amplo arco de alianças.

“Lula e Ciro jogam com as cartas abertas. FHC com as cartas fechadas”

BdFRS - Quem estaria na frente muito ampla que você imagina? Lula e FHC? Dilma e Aécio? Existe alguma possibilidade mínima de que tal venha a acontecer?

Benedito - Há fortes resistências dos nomes citados na pergunta para se sentarem à mesma mesa. Lula joga aberto e já declarou que o PT (e por decorrência ele próprio) “não pode entrar no primeiro ônibus que passar”. Ciro também joga com as cartas abertas e elegeu o PT e Lula como seus maiores inimigos. FHC joga com as cartas fechadas e faz movimentos dúbios, típicos de quem blefa, ora pede o impeachment de Bolsonaro, ora propõe conciliação, ora afirma que Bolsonaro “cava seu próprio fosso”. Dilma já declarou que não assina documento com Janaína ou Temer e, consequentemente, não se sentará à mesma mesa com os que apoiaram seu impeachment. Aécio está apagado, mas sempre pode ressurgir das cinzas.

Não é hora de escolher aliados. Os acertos de contas devem ficar para outro momento. Outro aspecto precisa ser ressaltado: uma parcela expressiva do eleitorado se omitiu em 2018, o que permitiu a vitória de Bolsonaro e o caos que se seguiu. O repúdio aos arrependidos somente os afastará. Sem a adesão dos arrependidos do seu voto ou de sua omissão, nunca conquistaremos a maioria da opinião pública necessária para construir as condições para retirar Bolsonaro.

BdFRS - Se você fosse citar um momento histórico semelhante a este que estamos vivendo qual seria? O das Diretas? O de 1974, ainda na ditadura, quando a ditadura perdeu as eleições parlamentares em 16 estados do Brasil para uma oposição mais unida?

Benedito - Torço para que a semelhança seja com 1984 e as Diretas Já, que prenunciou o fim da ditadura civil-militar. Temo que ela seja com 1974, pois apesar de ter sido um momento importante e que marcou o início da articulação das oposições àquela ditadura, a ditadura só terminou mais de uma década depois. Espero que não tenhamos que amargar tanto tempo de espera e sofrimento coletivo.

“O que determina a queda de um governante é o movimento da opinião pública”

BdFRS - Há uma maioria insatisfeita com o mandato Bolsonaro mas, no meio da pandemia, a rua não está disponível e é ela que costuma ser determinante na remoção de governos impopulares. Como se faz então?

Benedito - Mais do que as ruas tomadas pela população, que são importantes, o que determina a queda de um governante é o movimento da opinião pública. Com o crescimento das pesquisas de opinião, é esse movimento que forma a “onda” que pode provocar a ação do Congresso ou criar o clima que viabilize um ato do Judiciário que torne possível a saída do governante indesejado.

Não foram os movimentos de rua que levaram a queda de Collor ou Dilma, mas o trabalho de desgaste contínuo promovido pelas mídias e, com ele, a perda de apoio da opinião pública e da maioria no Congresso. Por isso, é fundamental a construção dessa Frente Ampla. Sem ela, dificilmente será possível obter a adesão dos veículos de comunicação social que atingem as grandes maiorias, conquistar seus corações e mentes e, com isso, influenciar as decisões tomadas pelos integrantes das instituições legalmente capacitadas a promover a retirada de quem se tornou ilegítimo perante a opinião pública.

BdFRS - Diante do que estamos vendo todos os dias, você é otimista quanto aos destinos do país?

Benedito - Sou otimista. Ainda que às vezes eu tenha recaídas de desânimo. Eu tenho convicção que as pessoas tomam decisões com base nas informações que têm. Muitas vezes as informações são erradas e até deturpadas e, por isso, as pessoas tomam decisões erradas. No entanto, com melhor informação pode-se corrigir os erros e evitar manipulações. Penso que o fundamental para que isso aconteça é nos empenharmos coletivamente na organização da sociedade civil, capaz de exigir melhores condições de vida e melhor qualidade na informação que recebe. Uma sociedade civil organizada é também capaz de elaborar um projeto de nação que torne possível a incorporação das grandes maiorias e a promoção do bem-estar coletivo.

Não estou sonhando com uma sociedade de anjos. Tenho plena consciência das paixões, vaidades e egoísmos humanos, mas também sei que as pessoas podem se organizar e encontrar meios de conviver com a diversidade de interesses. A democracia não cria igualdade, mas nos dá o método que torna capaz sua construção. Por isso luto por ela e por isso sou otimista. Fico desanimado, às vezes, porque penso que não viverei o suficiente para ver isso acontecer, mas readquiro meu otimismo sempre que me lembro que o tempo histórico não é o mesmo que o tempo de vida de cada um de nós.

(*) Na sua diversidade, o movimento inclui entidades representativas de muitas áreas como, por exemplo, UNE, MST, MTST, CNBB, OAB, Frente Brasil Popular, Conic, SBPC, ABI, CUT, CTB, Contag, Greenpeace, WWF, Força Sindical, Abong, Geledés, Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Associação da Parada do Orgulho GLBT/SP e Instituto Socioambiental.

Edição: Marcelo Ferreira