Rio Grande do Sul

Entrevista

Retorno gradativo e relação de trabalho: o que passa a valer a partir de agora?

O advogado Frederico Martins explica como ficam os contratos com a retomada em meio a uma série de medidas provisórias

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Contratos de trabalho formais foram atingidos e alterados pelas Medidas Provisórias do governo Bolsonaro - Reprodução

No início do mês de junho, alguns estados anunciaram reabertura gradativa das atividades. Mesmo com aumento dos casos de covid-19 e de óbitos, segundo informações do IBGE divulgadas no último dia 10, mais de 5 milhões de trabalhadores/as voltaram ao trabalho com flexibilização do isolamento desde maio.

Dado este fato, como ficam os contratos com a retomada em meio a uma série de medidas provisórias que garantiram a redução de jornada e de salário? Sobretudo para trabalhadores/as que atuam como Pessoa Jurídica que fizeram acordos de maneira informal sobre mudanças na dinâmica de trabalho, como fica agora a situação de trabalho com a tendência crescente de demanda?

Para responder a essas e outras perguntas, o Brasil de Fato conversou com o advogado trabalhista Frederico Martins. Acompanhe a entrevista a seguir.

Brasil de Fato RS - A legislação trabalhista sofreu algumas alterações na tentativa de se adequar às circunstâncias da pandemia. Com isso, milhões de trabalhadores tiveram sua jornada e salário reduzidos. Com a reabertura das atividades comerciais já é o momento dos/as trabalhadores/as receberem seus salários integralmente?

Frederico Martins - Essa questão da redução do salário é preciso ter bastante cautela para separar as situações em que são contratos de trabalho formais e que de forma formal eles foram atingidos e alterados pelas Medidas Provisórias. Isso que foi feito de forma formal e por várias empresas pelo que tenho conhecimento, foi realizado com base em uma das medidas provisórias (MP) que o Bolsonaro editou, a Medida Provisória nº 936, que autorizou a redução da jornada e do salário, e inclusive essa semana, foi transformada em lei.

Nesses casos, como há uma necessária formalização deste acordo de redução de salário e de jornada, ela fica dentro do que foi acordado e foi formalizado. Então se vai ficar por 3 meses, enfim, acaba que o empregado fica limitado ao que foi pré-estabelecido, ao que foi acordado, utilizo a palavra acordo, mas nem sempre é um acordo, é imposto pelo empregador, mas, enfim, nesse caso não haveria tanta dúvida porque poderia exigir o retorno do salário integral pela empresa a partir do momento em que é encerrado o prazo do acordo da redução que foi formalizado. Ou, então, conforme estabelecido pela Medida Provisória, pela cessação do estado de calamidade pública ou quando o empregador comunicar a sua decisão de antecipar o fim do período de redução pactuado. A partir de então, a jornada de trabalho e o salário deverão ser restabelecidos no prazo de 2 dias corridos. Aí teria que ver cada caso o período que foi.


O advogado trabalhista Frederico Martins explica as diferenças entre empregado formal e PJs / Arquivo pessoal

BdFRS - E em relação aos acordos firmados com trabalhadores/as que são Pessoa Jurídica (PJ)?

Frederico - Agora essa é outra situação que é um pouco diferente e aí também é preciso ter bastante cuidado para analisar porque são vários elementos. A depender de como é o trabalho prestado, a Pessoa Jurídica constituída apenas encobre uma relação de emprego de fato. Que, ao invés de estar com a carteira assinada, se tem uma pessoa jurídica. Para quem é PJ acaba tendo algum benefício provavelmente porque o contratante paga um valor maior que pagaria se assinasse a carteira, pois, com isso, poupa os encargos e repassa um pouco desse valor.

E aí nesse caso como fica? Bom, um prestador de serviços formalmente falando não é um empregado, não recebe um salário e sim um valor pela prestação de serviços. Seria formalmente isso. Então, com o início da pandemia, se teve ou não um acordo com o contratante de que haveria essa redução durante um período, aí cada caso acaba sendo um caso. Contudo, como isso na realidade não é um acordo formal, não existe um instrumento, um entendimento sobre um período pré-determinado, partiria de uma conversa tranquila, perguntando como está a situação da empresa, enfim, tentando se inteirar para buscar esse retorno do pagamento integral.

Eu acho complicado generalizar também, tratar tudo de uma mesma forma, porque cada caso é um caso. E aí mesmo fazendo essa separação, porque para os formais não têm muito essa discussão, eles vão ter que seguir o que foi acordado e formalizado, agora para os informais, pela própria informalidade, em que não se tem uma regra muito estabelecida, em que muitas vezes não se tem até mesmo uma padronização de pagamento, fica difícil estabelecer um acordo comum. Cada um tem uma forma de vinculação.

Mas vamos pegar um outro exemplo: alguém que preste serviço em um restaurante sem carteira assinada, e aí também teve salário reduzido porque só está indo trabalhar meio turno, pois só estão servindo almoço em tele-entrega, então nesse caso como a gente poderia resolver essa situação? Bom, primeiro que enquanto não estiver trabalhando todo o horário que antes trabalhava, eu acho justificável não estar recebendo integral. O primeiro elemento para questionar o não estar recebendo de forma integral é ter voltado a trabalhar todo o período ou não ter tido jornada reduzida e aí sim poderia fazer esse questionamento para quem paga pelo serviço prestado.

BdFRS - Então um PJ não é um trabalhador formal?

Frederico - Na realidade é sempre importante diferenciar a figura do trabalhador da figura do empregado. O empregado é aquele que tem um vínculo de emprego, então tem a carteira de trabalho assinada, a empresa paga fundo de garantia, paga décimo terceiro, paga férias, enfim, então se ele tem uma carteira de trabalho assinada, ele é um empregado. O trabalhador é gênero. Isto é, todo mundo que trabalha é trabalhador, mas pode ser de várias formas.

Agora, quando se trata de pessoa jurídica na realidade quem está trabalhando para a empresa não é o trabalhador, é a pessoa jurídica que o trabalhador tem, a empresa. Ele tem uma empresa no nome dele e é essa empresa que está prestando serviço para outra empresa. Essa relação é uma relação formal. É a mesma coisa que uma grande empresa ter um contrato com uma empresa de vigilância que fornece o serviço. A relação é a mesma que a de um PJ. É um contrato com uma empresa, prestando um serviço para outra empresa, então é uma relação formal. Agora, a diferença é essa, é quando essa formalidade, essa prestação de serviços é usada para driblar uma relação que na prática é de emprego. E aí, na realidade, a pessoa física trabalha para a empresa que tá no nome dela, essa empresa presta serviço para outra empresa, então a mão-de-obra é destinada à empresa da própria pessoa.

BdFRS - O que caracteriza um trabalhador informal?

Frederico - Trabalhador informal é aquele que trabalha como empregado, então ele recebe um salário, vai todo dia, obedece ordens e não tem a carteira assinada, então ele é trabalhador frio, como se chama também. Isso pode acontecer dentro de uma empresa, dentro de casa com uma empregada doméstica que trabalha todo dia e não tem uma carteira assinada, um trabalhador rural que é muito comum com contratos para safras, esse tipo de coisas. Que daí nesse caso eles não têm nenhuma formalização de nada, é como se eles não prestassem serviço, como se eles não existissem para a empresa ou para quem está empregando. Por que eu faço questão de fazer essa diferença? Porque é um pouco diferente do PJ em que há um documento formal, há um contrato, há uma relação reconhecida que permite discutir se a forma dessa relação é efetivamente a que é prestada, o que permite discutir a validade, a regularidade do contrato de prestação de serviços.

BdFRS - Se, então, por fim, o trabalho PJ é um trabalho formalizado, com contrato, porque não pode ser formalizada a diminuição de salário acordada entre as partes, porque não pode ter um acordo formalizado?

Frederico - Porque pela relação que existe, a PJ não tem salário e não tem jornada. Não tem como reduzir, porque nem isso existe. Embora se possa chamar de salário o que se recebe, formalmente não é salário, é uma contraprestação, uma remuneração pelo serviço que é prestado. Mas é autônomo, então não recebe, não tem obrigação de cumprir uma jornada e não tem um salário fixado. Teria um valor pela prestação do serviço. E por que acaba sendo difícil dissociar essa situação? Porque na realidade a relação formal de prestador de serviços, de autônomo, ela não corresponde à relação real e prática que se tem. Na prática, o PJ é um empregado, então por isso que essas coisas inerentes à relação de emprego que deveriam ser estendidas como um caso à própria redução de salário e de jornada, não se aplicam. Porque formalmente é uma relação e na prática é outra e aí o prestador de serviço, a PJ, preencheria os requisitos para ter esse vínculo de emprego reconhecido e ao mesmo tempo ter essas circunstâncias que são inerentes à condição de empregado.

BdFRS - E como resolve essa situação?

Frederico - A princípio se tem um contrato assinado em que se compromete a entregar um serviço X até por um período Y. Quando ocorreu a pandemia, o correto teria sido formalizar o acordo da redução com um aditivo no contrato para prever que durante determinado período o valor da contraprestação seria reduzido. Essa seria a forma de resolver isso formalmente falando. Isso se fosse manter a consideração de que se é PJ e que presta serviço para outra empresa e que houve a necessidade de fazer uma redução no pagamento. Mas a formalização de redução de salário e de jornada nos termos da medida provisória com o governo subsidiando o resto, isso, por ser PJ, não tem. Porque na realidade não há salário e não há jornada. Na prática é difícil enxergar a distinção das relações e é uma coisa que se discute bastante no fenômeno da pejotização.

BdFRS - Mas é contraditório, certo?

Frederico - De fato é! Mas é um reflexo da precarização do trabalho e da tentativa de burlar a legislação trabalhista com essas figuras de pejotização, então de fato é contraditório porque a relação efetivamente acaba não sendo de PJ e sim de empregado, por isso essa questão toda.

BdFRS - Qual a garantia que tem um trabalhador PJ de ter novamente o valor integral, que anteriormente era pago pelo serviço prestado, sem ter feito algum aditivo ou assinado algum termo relacionado a essas mudanças?

Frederico - Bom, aí essa pergunta… vamos pensar o seguinte: teria que separar aqueles que são PJ e têm uma relação de PJ de fato, daqueles que são PJ e na prática a relação é de emprego. No primeiro caso, se houve a retomada integral da prestação de serviço e o pagamento ainda está sendo parcial, aí teria que ver qual seria a forma de cobrar isso. E aí não é na Justiça do Trabalho, é na Justiça comum porque é um contrato privado entre duas empresas, essa é a realidade.

Agora, no segundo caso em que é uma pessoa jurídica formalmente, mas na prática a relação é de emprego, aí teria que entrar com uma ação buscando o reconhecimento do vínculo do emprego e todas as parcelas como se empregado fosse. O ônus dessa busca judicial que é a grande questão. Porque aí provavelmente se perde a relação que existe, o trabalho que existe. Então por isso que eu digo que o melhor jeito de resolver seria com uma combinação ou até mesmo a formalização desta combinação que é ‘voltar a trabalhar como eu trabalhava, fazer o que eu fazia, mas em contrapartida vocês voltam a me pagar o que me pagavam’. Seria o melhor jeito, claro que cada relação, cada situação é um caso, às vezes as pessoas, geralmente, no caso, os empregadores, não são tão solícitas. Mas eu penso que seria o melhor jeito de resolver tanto para o primeiro quanto para o segundo caso.

BdFRS - Agora retornando para a realidade de trabalhadores formais que tiveram a jornada e o salário reduzidos. O valor para complementar o salário veio de um auxílio do governo, como já foi comentado. Os trabalhadores voltando a ter jornadas completas, continuam recebendo esse auxílio? Ou a partir do momento em que volta à sua jornada comum é a empresa que fica responsável pelo pagamento integral do salário?

Frederico - Se houve a redução da jornada e do salário, eles não poderiam estar trabalhando além da jornada que foi estipulada. Por exemplo: trabalha 8h por dia, aí reduziu para 6h por dia, não pode trabalhar mais do que 6h por dia. A questão toda é ver como foi feito esse ajuste, por quanto tempo, porque na realidade as empresas que adotaram essas medidas, elas fizeram porque de fato tiveram uma diminuição de produção e diminuiu o trabalho.

É claro que algumas acabam usando isso de maneira vantajosa e estão exigindo que algumas pessoas trabalhem o mesmo que trabalhavam antes por estar recebendo o subsídio do governo, mas aí é uma questão irregular, uma fraude. Uma fraude praticada pelo empregador que está se valendo do subsídio do governo. Se eles voltarem a trabalhar com o horário integral, deve ser restabelecido o salário integral, então aí cai o subsídio.

Edição: Katia Marko