Rio de Janeiro

memória viva

Artigo | O que os nomes das ruas, avenidas e monumentos dizem sobre nossa história?

Uma das questões diz respeito ao gênero: cerca de 82% dos nomes de espaços públicos fazem menção a homens

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Rua do Ouvidor é uma das que carrega memória histórica no centro do Rio de Janeiro - Divulgação

A ideia central deste texto é debater como a memória de nossas ruas, avenidas, praças e monumentos remetem a registros históricos ou mesmo referenciais e contam parte da nossa construção enquanto sociedade e civilização. Na maioria das vezes o grande problema é sob qual perspectiva essa história é contada e quais são os seus protagonistas. 

Muitos foram os fatores que influenciaram a nomenclatura dos espaços públicos. Diversas denominações que remetem as cidades mais antigas tinham relação com referências comerciais, religiosas e até geográficas dos seus grandes centros:  Rua Larga, Rua da Quitanda, Rua do Ouvidor, Rua da Nossa Senhora do Carmo e Rua São Bento no Rio de Janeiro.

Influências e acontecimentos políticos e históricos levaram a mudanças, mas, muitas vezes, a manifestação popular é que fez a diferença ao batizar e legitimar novos usos em seu cotidiano.

No colonialismo (do descobrimento à  1815, quando o Brasil foi elevado a reino unido português) era uma tradição conhecer uma rua pelo seu morador mais ilustre como por exemplo, Mem de Sá, nobre e administrador colonial português. Outras por algum traço distintivo ou data de episódio marcante do local, como temos relação à  Rua Sete de Setembro ou como era inicialmente chamada, A Rua do Cano,  que era o caminho aberto para levar até o mar as águas estagnadas da Lagoa de Santo Antônio. Só em 1856 foi rebatizada como Sete de Setembro, em comemoração à data de Independência do Brasil.

A responsabilidade institucional da época e ainda hoje segue sendo das Câmaras Municipais que votam e instituem os nomes dos logradouros, assim como também as suas modificações. Como nossa história segue e somos atravessados por novos questionamentos, novos acontecimentos e inclusive novas políticas é sempre bom observarmos esses lugares e que personalidades são estas que estão sendo enaltecidas. 

Um dos questionamentos e distopias que diz respeito ao período histórico com relação aos nomes é a questão do gênero. Cerca de 82% dos nomes de espaços públicos fazem menção a homens.

Em muito, isso reflete a participação da mulher na vida pública, que é uma conquista mais recente, visto que apenas homens eram reconhecidos como figuras notáveis e representativas. Ainda assim, em sua maioria, muitas das representações de mulheres na nomenclatura fazem menção religiosa à santas ou integrantes de ordens religiosas.

No Rio de Janeiro, como forma de criar mais equidade nessas medidas, uma lei municipal de 1999 tornou obrigatória a alternância de gêneros para a nomeação de logradouros em igual proporção, mas a disparidade ainda segue grande. Até 2018, apenas 15% das ruas da cidade possuem nomes femininos. 

Leia mais: Artigo | Negro, pobre, gago, epilético: Machado de Assis teve quase tudo contra si

Ainda na linha do tempo, se pensarmos no período ditatorial no Brasil, estes homenageiam diversas obras e locais referidos à grandiosidade, como é o caso da Avenida Castelo Branco e da Ponte Costa e Silva (nome oficial da Ponte Rio-Niterói) que comemoram o regime militar e seus generais. Este ponto também nos leva a entender a diferenciação da posição geográfica dos personagens deste período, pois do outro lado da história também existem menções às vítimas e figuras politicamente perseguidas, mas estes locais de memória e resistência se limitam as áreas mais periféricas e pobres, como é o caso do bairro operário de Bangu.

Ruas de memória

Em São Paulo foi criado o programa “Ruas de Memória”, por meio da Secretaria de Direitos Humanos. Este consiste em suprir uma demanda de pessoas desaparecidas, torturadas e mortas durante o período da ditadura e visa ressignificar o espaço público e quem os protagonizam hoje. Além de discutir o legado da ditadura, o projeto tinha como pilar a construção de uma cidadania diferente. Uma de suas idealizadoras, Clara Castellano, afirmou:  “A ditadura trouxe também o esvaziamento do espaço público e, com as perseguições políticas, reforçou a cultura do medo. A cidade ficou vazia. O projeto é uma forma de trazer a ocupação e ressignificação desses espaços”.

Em contraponto o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) e presidente do Instituto Pólis, Renato Cymbalista afirma que projetos como esse demonstram que finalmente o país está enfrentando a “herança maldita” da ditadura militar.

“O nome das ruas tem um significado simbólico muito grande: significa um consenso social de que esta pessoa deve ser homenageada e sua memória perpetuada. Instituir como nomes de ruas pessoas envolvidas na ditadura significa a legitimação de tais crimes. As ruas devem ser renomeadas, mas não devemos esquecer que elas já tiveram esses nomes por décadas. É importante marcarmos que durante décadas a nossa sociedade não se incomodou em dar nomes de ruas, avenidas, aeroportos a personalidades envolvidas com a violação grave de direitos.”

Tudo isto aponta para um debate que não é novo na pauta da identidade dos nossos espaços públicos, mas apresenta a urgência da mudança e reparação, nos pautando na história e, principalmente, no que ela nos revela enquanto narrativa muitas vezes falseada no projeto político de soberania nacional. A memória é viva e precisa permanecer em constante reflexão.

*Gregory Combat é produtor, artista e gestor cultural.

Edição: Mariana Pitasse