Rio Grande do Sul

MULHERES NA POLÍTICA

Mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens constroem o feminismo popular

“As mulheres são fundamentais no MAB e, junto com os jovens, conformam 70% da nossa organização”, afirma Tati Paulino

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Tatiane Paulino Bezerra integra a Coordenação Estadual do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) - Divulgação

“Se diz o poeta ‘viver é um rasgar-se e remendar-se’, ser mulher atingida é obrigatoriedade de reinventar-se cotidianamente. Assim, a realidade me rasga, a lama me soterra, a barragem inunda minha casa, mas eu me reconstruo na costura de cada boneca, de cada tecido. Ser atingida é essa coisa de costurar o não dito. A juta é o grito que ecoa na mente dos inertes a esse modelo exploratório. Esses que negam que somos feitos da mesma matéria prima, da mesma natureza, insistindo em nos tirar a condição de existência no mundo. Mas contra eles, recusamos o carimbo do papel social pelo sexo que nascemos.” Esse trecho do artigo Ser mulher atingida é obrigatoriedade de reinventar-se cotidianamente, da advogada popular da coordenação nacional do MAB, Tchenna Maso, explicita a construção diária do chamado feminismo popular no Movimento dos Atingidos por Barragens.

Tatiane Paulino Bezerra iniciou sua apresentação assim: “Sou mulher preta nordestina, atingida pela Barragem do Castanhão, no Ceará.” E essa é a sua força para enfrentar as tarefas desde que ingressou nas fileiras do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, em meados dos anos 2000. Há 5 anos reside no Norte do Rio Grande do Sul, onde integra a Coordenação Estadual da organização e também o Movimento de Afectados por Represas em Lationoamérica - MAR, articulação de 22 países da América Latina, com representação da América do Norte e Europa, na construção de um movimento de atingidos por barragens nesses continentes.

Segundo ela, a partir da visão de que não bastava o movimento lutar para garantir os direitos das populações atingidas, decidir se queriam ou não sair de seus territórios, mas sim era preciso questionar as desigualdades sociais e propor uma nova sociabilidade, cresce a participação das mulheres. “As mulheres organizadas no MAB começam a ocupar espaços de coordenações em nível local, regional e nacional e, em seguida, passam a discutir e construir seus espaços auto-organizados. É daí que surge a consigna ‘Mulheres, água e energia não são mercadorias’. E inicia toda uma formulação do nosso papel no MAB, na construção do feminismo popular e na transformação das estruturas opressivas e exploradoras da sociedade capitalista.”

E continua Tchenna Maso, em seu artigo: “A nossa liberdade – mulheres – é a ruptura dos seus privilégios – homens – ou seja, uma liberdade conflitiva que não se trata de conflitos absolutos. Se trata de subordinar o tempo, as decisões de realização da vida concreta. A consequência de um projeto de sociedade em que caibam os seres humanos e suas necessidades, que dê espaço igualmente a natureza, e que produza a riqueza de uma maneira tal que não sejam ameaçadas as fontes de toda a riqueza: a terra, a água e o trabalho. Não é um horizonte único, mas de possibilidades. O possível como o ainda não fecha o futuro, o impossível que se traduz em possibilidades se abre. Que construamos então o impossível: o Estado à serviço da vida real e concreta, sob pena do humanismo seguir sendo um discurso. É Tempo de deixar de sermos rio, que correm margeados sozinhos, para aprendermos a ser totalidades, como o mar. Tal qual as sementes, que bordaram a resistência: Nicinha de Souza, Berta Cáceres, Marielle Franco e Dilma Ferreira. Tantas são as mulheres que cultivam sonhos de novos mundos ainda possíveis.”


O símbolo do feminino representa as mulheres nesta arpillera, uma técnica têxtil popular chilena resgatada pelas mulheres do MAB / Divulgação

Confira a íntegra da entrevista para o Especial Mulheres na Política.

Brasil de Fato RS - Gostaria que tu nos falasse um pouco da tua trajetória.

Tatiane Paulino Bezerra - Sou mulher preta nordestina, atingida pela Barragem do Castanhão, no Ceará. Ingressei nas fileiras do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB em meados dos anos 2000. No início dessa década fomos expulsos de nossas terras para dar lugar a essa grande obra. Há 5 anos resido no Norte do Rio Grande do Sul, onde tenho tarefas na Coordenação Estadual da organização e no Movimento de Afectados por Represas em Lationoamérica - MAR, articulação de 22 países da América Latina, com representação da América do Norte e Europa, na construção de um movimento de atingidos por barragens nesses continentes.

BdFRS - Como tu avalias a situação da participação das mulheres no Movimento dos Atingidos por Barragem. E a importância da participação das mulheres nos movimentos sociais?

Tatiane - Falar das mulheres atingidas por barragens e sua participação nessa organização é sempre um desafio e uma emoção. Muitas coisas conquistamos ao longo desses quase 30 anos de existência. No início da construção do MAB, os espaços de reuniões de decisões eram majoritariamente ocupados pelos homens. Isso ocorria não porque não havia mulheres lutando pelos seus direitos, mas sim, pela estrutura machista dessa sociedade vigente.

Com o decorrer dos anos, o movimento começa a expandir sua atuação e também a construir uma estratégia em que tinha como centralidade a mudança de sociedade, ou seja, não bastava lutar para garantir os direitos das populações atingidas, decidir se queriam ou não sair de seus territórios, mas sim, questionar as desigualdades sociais e propor uma nova sociabilidade. Com isso, se faz necessária a participação das mulheres nos espaços de decisão. É a partir desse tensionamento que as mulheres organizadas no MAB começam a ocupar espaços de coordenações em nível local, regional e nacional e, em seguida, e passam a discutir e construir seus espaços auto-organizados. É daí que surge a consigna “Mulheres, água e energia não são mercadorias”.

Nesse sentido, inicia toda uma formulação do nosso papel no MAB, na construção do feminismo popular e na transformação das estruturas opressivas e exploradoras da sociedade capitalista. As mulheres são fundamentais no MAB e, junto com os jovens, conformam 70% da nossa organização. As mulheres são as mais afetadas por esse modelo energético que viola direitos, ceifa vidas e tira os meios e modos de vida de muitas populações em todo o território nacional. Mas essas violações de direitos humanos só aumentam nossa indignação e consciência que é preciso estarmos organizadas para lutar.    


Tati Paulino também também está na construção do Movimento de Afectados por Represas em Lationoamérica - MAR, articulação de 22 países da América Latina / Divulgação

BdFRS - Qual a tua análise do movimento ao longo desses anos, principais entraves, desafios, avanços e retrocessos? Em que precisamos avançar?

Tatiane - Nessa caminhada de cerca de três décadas, nos desafiamos a construir um movimento nacional, autônomo, de massa, de luta. Buscamos organizar os atingidos por barragens antes, durante e depois da construção dos empreendimentos. Nosso objetivo é defender os interesses das populações, que vão além das famílias que têm suas terras encobertas pelas águas, mas também os atingidos e atingidas pelo sistema de geração, distribuição e venda de energia elétrica. Nesse sentido, um dos principais avanços foi e é o conceito de atingidos.

Para nós do MAB, atingidas são todas as pessoas que pagam uma das maiores tarifas de energia elétrica do mundo, sendo um país em que 60% de sua geração é de fonte hídrica, uma das mais baratas do mundo. Mas, por outro lado, há imensos retrocessos que, a cada dia, aprofundam ainda mais as violações de direitos humanos já sofridas pelos atingidos como, por exemplo, a garantia de uma indenização justa no caso de remoção, o que foi conquistado na década de 1990/2000.

Atualmente, a implementação de projetos de reassentamento é quase inimaginável. Além disso, não existe uma legislação que garanta direitos a essas populações, tudo que se conquistou até hoje foi com muita luta. Avançamos na consciência coletiva, na construção do plano nacional da organização, ancorado no tripé da formação, organização e luta, na construção da Plataforma Operária e Camponesa da Água e Energia, na articulação do campo e da cidade com petroleiros, eletricitários e populações urbanas que são atingidas por esse modelo energético.

Temos o desafio de ampliar nossa mensagem política no sentido de estarmos presente em todos os centros urbanos do nosso território, com nossa mensagem que água e energia não são mercadorias, mas sim direitos básicos de toda a humanidade. 

BdFRS - No Brasil, quem são os principais atingidos por barragens? Contexto atual? Que impactos a privatização do saneamento pode trazer? Qual a importância da luta pela água?

Tatiane - São as populações que são obrigadas a deixar seus territórios para dar lugar a esses empreendimentos que, por sua vez, não são somente hidrelétricas, mas também a mineração, hidrovias, parques eólicos e todas as pessoas que são penalizadas com as altas tarifas de energia elétrica. Nesse sentido, lutar contra a privatização da água é extremamente necessário.

Nossa análise é que acontecerá com a água e o saneamento o mesmo que ocorreu no setor elétrico, a partir da década de 1990, com a política neoliberal de privatização. A água, um bem elementar para a manutenção da vida, passa a ser tratada como uma mera mercadoria - muito lucrativa -, negociada nas bolsas de valores, aos gostos do capital financeiro internacional.

Nesse contexto, o Brasil se constituiu como um território estratégico na disputa internacional por recursos naturais, considerando que 13% das reservas potáveis de água do mundo estão em nosso país. Para o povo, ficarão as tarifas exorbitantes e os serviços de péssima qualidade (para quem puder pagar por ele). Ou seja, haverá a penalização dos povos em troca do acúmulo cada vez maior de lucro por parte das empresas multinacionais e, quem paga essa conta, historicamente, é a classe trabalhadora.  


‘Mulheres, água e energia não são mercadorias’ foi um lema conquistado pela luta das mulheres no MAB / Divulgação

BdFRS - Gostaria que tu nos falasse da relação das Barragens com a Mineração. E da relação com o setor energético.

Tatiane - Há uma relação intrínseca entre os donos das mineradoras e das hidrelétricas. Muitas mineradoras, em especial a VALE, são acionistas de hidrelétricas, pois necessitam de energia para produzir o ferro, o alumínio e tantos outros minérios. Nesse contexto, os grandes consumidores de energia, como o setor minerário, compram a energia pelo preço de custo, ao passo que o povo arca com o preço de mercado, praticado internacionalmente, o qual se baseia nas fontes térmicas de geração de energia, muito mais caras que a hídrica.

A forma de atuação do setor minerário, o qual coloca o lucro acima da vida, é semelhante ao setor elétrico, promovendo profundas violações de direitos humanos nos territórios atingidos. A mineração também usa de estruturas de barramentos para acúmulo e contenção de rejeitos, resultantes do processo de extração dos minérios. A existência de uma grande quantidade de barragens de rejeitos no Brasil, em especial em MG, é um fato preocupante, considerando a instabilidade das estruturas (que, na maioria das vezes, são construídas pelo método mais barato e não o mais seguro) e a ineficiência no que diz respeito à fiscalização, em que é permitido às empresas realizarem a autofiscalização dos empreendimentos.

Um caso emblemático é o da barragem de Córrego do Feijão, em Brumadinho, onde foram apresentados laudos de segurança falsificados pela Tuv Sud, empresa de assessoria contratada pela VALE para realização dos estudos. A exemplo do que ocorre no setor elétrico, no ramo da mineração, os atingidos e atingidas padecem com a ausência de uma política de garantia de direitos, que coloque a vida e a segurança das pessoas acima do lucro. Isso fica evidente quando olhamos a situação das vítimas dos rompimentos de barragens em MG que, até hoje, não tiveram suas perdas reparadas (ressaltando que não há nada que pague pelas vidas que foram ceifadas precocemente) e que os culpados seguem impunes.


As vítimas dos rompimentos de barragens em MG até hoje não tiveram suas perdas reparadas e os culpados seguem impunes / Divulgação

BdFRS - O país tem cerca de 24 mil barragens, e mesmo assim é uma das energia elétrica mais caras do mundo (é a 14ª mais alta em ranking que compara o Brasil com os 28 países-membros da Agência Internacional de Energia - AIE), de acordo com levantamento da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee). A que se deve isso, levando em conta o número de barragens?

Tatiane - Isso se deve à lógica da privatização que ocorreu nos anos 1990, quando o setor elétrico foi privatizado em quase sua totalidade. O Estado brasileiro, principalmente via BNDES, injeta dinheiro em Parcerias Público-Privadas (PPPs) para a construção das hidrelétricas, mas os sócios majoritários são as empresas multinacionais, que não investem nada em nossos territórios, drenando os lucros para seus países de origem. O que fica para o povo brasileiro são as altas tarifas, balizadas no preço cobrado internacionalmente pela energia térmica.

A energia não é vista como um bem comum que a humanidade necessita para se desenvolver, mas sim como uma mercadoria acessível a quem puder pagar. Isso explica o fato de populações que foram atingidas por barragens há mais de 30 anos só terem acesso à energia elétrica recentemente, como é o caso de comunidades atingidas pela hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia.

BdFRS - Que impactos a pandemia trouxe para os atingidos por barragem?

Tatiane - A pandemia desvelou para muitos/as o nível de vulnerabilidade social que vivem muitas dessas famílias. Grande parte se encontra nas periferias das grandes cidades, onde nesse momento de crise perderam toda condição de materialização da vida. Assim, a questão social torna-se mais aguda, com o aprofundamento da vulnerabilidade socioeconômica.

Para as populações que vivem no campo, o isolamento social está sendo para além do recomendado pelas organizações de saúde, pois muitas comunidades não têm acesso à internet ou quaisquer infraestruturas que possam garantir o mínimo de comunicação, o que tem acarretado muitos desafios para dentro da organização. Pode-se afirmar que os impactos vão desde a questão econômica até a psicológica, emocional, que deve ter uma atenção muito especial no pós-pandemia. É preciso recompor um tecido social.


"Deveríamos evoluir para uma sociedade muito mais justa, fraterna, solidária, onde as ações de solidariedade se tornassem cotidianas" / Arquivo pessoal

BdFRS - Que sociedade deveríamos ter pós pandemia, ou que sociedade podemos esperar?

Tatiane - Deveríamos evoluir para uma sociedade muito mais justa, fraterna, solidária, onde as ações de solidariedade se tornassem cotidianas, para além da caridade em que se dá o que sobra, mas sim repartir o que se tem. Poderíamos ter um Estado atuante com políticas públicas voltadas para o bem comum da sociedade, em que os seres humanos fossem valorizados como tal. 

Ainda não consigo formular uma ideia clara do que podemos esperar, porém, apresentam-se vestígios de que poderemos caminhar para um cenário de penumbra histórica, com muito mais injustiças, encorajadas pelo Estado governado pelo presidente genocida que desgoverna o Brasil, validado por grande parte da sociedade.

Podemos ter como exemplo toda a proposta de privatizações que estão em curso, até os inúmeros casos de violências domésticas, crimes de racismo e intolerância. Mas, nessas situações, também abrem-se janelas históricas para transformações profundas na sociedade, as quais só se concretizam com um amplo processo de tomada de consciência pela classe trabalhadora, aliada ao estudo, a organização das massas e a luta coletiva rumo à construção da sociedade que almejamos.

Edição: Katia Marko