Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Intolerância religiosa ou racismo religioso?

Caso da mãe que perdeu guarda da filha por participar de ritual da Candomblé evidencia a perversidade racista brasileira

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Quando falamos de intolerância religiosa, não estamos falando de qualquer intolerância. Estamos questionando o porquê da demonização da religiosidade de Matriz Africana" - Eduardo Knapp/Folhapress

A perversidade racista brasileira não possui limites, é silenciosa, é ruidosa, permeia a sociedade e se manifesta de todas as maneiras imagináveis e inimagináveis. Uma das suas manifestações, de alcance nacional, foi envolvendo uma menina de 12 anos iniciada no Candomblé. A mãe de Araçatuba, no interior de São Paulo, perdeu a guarda da filha de 12 anos após a adolescente passar por um ritual de iniciação no candomblé, que envolve raspar a cabeça dos novos adeptos. A ação foi movida pelo Conselho Tutelar da cidade, que recebeu denúncias de maus-tratos e abuso sexual. Como uma delas foi feita pela avó da menina, que é evangélica, a defesa da família afirma que o caso é de intolerância religiosa.

No último dia 23 de julho, o Conselho recebeu uma denúncia anônima dizendo que a jovem era vítima de maus-tratos e abuso sexual. Junto de policiais militares, os conselheiros foram até o terreiro. A adolescente chegou a relatar que não estava sofrendo qualquer tipo de abuso, mas, sim, passando por um ritual. A mãe, que trabalha como manicure, explicou que, durante a cerimônia, a menina não poderia deixar o local. Mesmo com as justificativas, mãe e filha foram levadas para a delegacia. Só foram liberadas depois de a jovem passar por exame de corpo de delito no IML (Instituto Médico Legal), que não encontrou nenhum tipo de hematoma ou lesão. A adolescente só estava com a cabeça raspada — segundo ela, estava se tornando filha de Iemanjá.

Nestes rituais, chamados de feitura de santo, o novo adepto fica 21 dias recluso no terreiro. Durante o retiro espiritual, recebe banhos de ervas e é exposto a fundamentos da religião. A ideia é que ele se purifique, entre em contato com o axé (que, na língua iorubá, significa “força” ou “poder”) e, de acordo com a tradição, renasça conectado com valores ancestrais da crença. Deste ponto de vista, a passagem pelo terreiro é uma gestação. Raspar o cabelo é um ato sagrado e simboliza tudo isso.

Ainda que não tenham surgido novos indícios de violência ou abuso, familiares que não concordam com a religião fizeram outra denúncia. Dessa vez, registraram um boletim de ocorrência em que apontaram que a adolescente estava sendo mantida à força no terreiro e sob condições abusivas. Isso fez conselheiros tutelares e policiais irem novamente até o local. Não encontraram ninguém, pois a adolescente já estava em casa. Os familiares não desistiram e, junto do Conselho Tutelar, denunciaram o caso à Promotoria. Alegaram que houve lesão corporal por causa do cabelo raspado. Entraram na Justiça, que transferiu a guarda para a avó materna. Durante mais de uma semana, mãe e filha só conversam por celular e se veem durante visitas curtas. Segundo a mãe as visitas são bem restritivas — ela só pode encontrar a filha pessoalmente por cerca de cinco minutos. A manicure diz que a filha relatou que estava sendo forçada a abandonar os preceitos que está seguindo em sua iniciação no candomblé.

Na última semana um juiz de Araçatuba (SP) determinou a imediata restituição da guarda da adolescente à sua mãe. A decisão que restabeleceu a guarda materna é do juiz Danilo Brait, da 2º Vara Criminal e Anexo da Infância e Juventude de Araçatuba (a 527 km de São Paulo). Segundo o magistrado, exames realizados na menina apontaram que ela não tinha nenhuma lesão, hematoma ou outro sinal de agressão ou abuso. Em seu depoimento, de acordo com juiz, a adolescente também afirmou que frequenta a religião com a mãe e que estava ciente do ritual a que seria submetida. O Ministério Publico se mostrou a favor da revogação da decisão liminar que havia retirado da mãe a guarda da filha.

Advogado que atuou no processo de recuperação de guarda, Hédio Silva Jr defendeu a importância de manter o vínculo entre pais e filhos. “Ela [a adolescente] declarou com todas as letras que escolheu a religião, que participou do ritual por livre e espontânea vontade, portanto não havia qualquer razão para suspensão do poder familiar.” Especialista em casos que envolvem racismo e intolerância religiosa, o advogado acredita que a decisão do juiz em favor da mãe deverá ser mantida. “Houve uma sucessão de arbitrariedade, especialmente do conselho tutelar, então agora nós vamos buscar a responsabilização criminal de todos que atuaram arbitrariamente para que a gente tivesse uma decisão tão traumática”, disse o advogado.

Nesta sexta-feira (21), também foi realizada uma reunião sobre o caso, organizada pela deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP) e da qual participaram, entre outros, procuradores, a mãe da adolescente e o pai de santo do terreiro frequentado pela família. O encontro resultou em um compromisso do Ministério Público de elaborar, em diálogo com a sociedade, uma norma técnica que possa ser utilizada para orientar a atuação do órgão com os conselhos tutelares. “É uma esperança que episódios lamentáveis como esse não se repitam”, afirmou o Hédio Silva Jr, que também participou da reunião.

Além de tratar da denúncia, o objetivo da reunião foi reforçar o papel do Ministério Público de São Paulo no sentido de fiscalizar a atuação dos conselhos tutelares para atuem de acordo com o ECA, e não baseados em convicções religiosas. “O Ministério Público tem a função de fiscalizar a atuação dos conselhos tutelares, porque não é razoável que um conselheiro tutelar, pago com recursos públicos, atue como se o conselho tutelar fosse o puxadinho da sua igreja”, disse o advogado. Ele também ressaltou que a principal obrigação do Estado nesse caso é criar elementos de prevenção para que episódios assim não se repitam. “É preciso que o Estado adote medidas que evitem que brasileiros seja discriminado ou violentado em razão da sua descrença ou crença”, afirmou.

Em 27 de dezembro de 2007, a Presidência da República oficializava o dia 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída pela Lei nº 11.635, em memória do falecimento da Iyalorixá Mãe Gilda do terreiro Axé Abassá de Ogum (BA), vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana. A sacerdotisa foi acusada de charlatanismo, sua casa foi atacada e pessoas da comunidade foram agredidas, levando Mãe Gilda a falecer vítima de infarto em 21 de janeiro de 2000, após ter sua foto publicada na matéria “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, do jornal Folha Universal.

A partir da instituição da Lei nº 11.635, a invasão a templos e agressões a religiosas e religiosos de qualquer credo passaram a ser crimes inafiançáveis. A pena vai de um a três anos de detenção, sendo julgada em Varas Criminais e não mais nos juizados especiais. Apesar da modificação na legislação brasileira, a violação de direitos está atingindo duramente os Povos Tradicionais de Matriz Africana, especialmente na Cidade do Rio de Janeiro, embora os ataques as religiões de matriz africana acontecem em todas as regiões do país. O fundamentalismo avança a passos largos em todas as instâncias, assim não é absurdo pensarmos que, em pleno século XXI, tenhamos a volta da caça às bruxas e bruxos.

Quando o Povo Preto veio para o Brasil, há mais de 500 anos, foi retirado à força de seus territórios para serem escravizados aqui. A escravidão deixou profundas marcas na vida que vivenciamos. A escravidão justificou as chicotadas do feitor, assim como o uso dos grilhões e o porão fétido do Navio Negreiro. Violentou direitos, a língua, cultura, religião, a vida enfim… nossos valores civilizatórios. Junto a tudo isso veio a colonização.

Com o tráfico negreiro, foram trazidos diversos povos de diversas regiões do continente africano para o nosso país. Os historiadores Vianna Filho e Pierre Verger afirmam que a vinda forçada das populações africanas se deu em quatro grandes ciclos: o primeiro, trazendo pessoas da Costa Guiné, durante a segunda metade do século XVII; o segundo, trazendo pessoas da Bacia do Congo, sobretudo dos atuais Congo e Angola, no século XVIII; o terceiro, trazendo pessoas da Costa da Mina, durante quase todo século XVIII; o último, trazendo pessoas da Baía do Benin, entre 1770 e 1850. As três tradições que constituíram os Povos Tradicionais de Matriz Africana vieram nos três últimos ciclos: os povos de língua banta, vindos no segundo ciclo; os povos de língua ewé-fon, no segundo ciclo; e os povos de língua ioruba, no último ciclo. Entendendo que cada tradição advinda da África trouxe para cá sua história, cultura, religião, língua, dialeto, mitos, valores.

As práticas sagradas dos Povos Tradicionais de Matriz Africana ressignificaram símbolos e territórios. A África dentro de cada Terreiro de Candomblé ordenou a liturgia e resiste até hoje seguindo um caminho deixado pela nossa ancestralidade. A religião na África é comandada por homens, aqui no Brasil se deu o inverso, porque aqui as mulheres foram as primeiras a conquistar suas alforrias. Assim quando falamos de intolerância religiosa, não estamos falando de qualquer intolerância. Estamos questionando o porquê da demonização da religiosidade de Matriz Africana.

Os ataques e perseguições são mais antigos que possa parecer. Cito aqui a Quebra de Xangô, Dia do Quebra ou Quebra de 1912, fato registrado pelos estudiosos da História do Brasil. Um crime hediondo de intolerância religiosa que aconteceu no dia 1º de fevereiro de 1912 em Maceió, Alagoas. O ato culminou com a invasão e destruição dos principais Terreiros de Xangô em Maceió. Todas as Casas de Culto Afro-brasileiro existentes foram destruídas. Terreiros foram invadidos, objetos sagrados retirados e queimados em praça pública. Pais e mães de Santo foram espancados. A partir daí os adeptos, iniciados nas práticas de Culto aos Orixás, criaram o chamado Xangô Rezado Baixo. A Constituição de 1891 garantia a liberdade de crença e culto, porém o código penal de 1890 criminalizava as Casas Sagradas e tipificava as manifestações, práticas rituais, como curandeirismo, baixo espiritismo, charlatanismo, alegando o exercício ilegal da medicina. No período de 1889-1930 era comum a polícia perseguir os cultos das religiões de Matriz Africana, invadindo terreiros e apreendendo objetos sagrados.

O Código Penal de 1890 criminalizava também o samba e a capoeira. Ou seja, tudo que fosse resultante da cultura afro-brasileira. No período da República, o Candomblé foi proibido de exercer as suas atividades e os Terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio (ação de explorar, estimular ou favorecer comércio carnal ilícito, ou induzir ou constranger alguém a sua prática). Portanto, sempre estivemos à margem, e o Estado brasileiro não coibiu, de forma efetiva, as várias manifestações de racismo religioso que ocorreram no país até os dias de hoje.

* Michele Corrêa é feminista negra, graduanda em Filosofia na UFPel, assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

Edição: Marcelo Ferreira