Rio Grande do Sul

Entrevista

Márcio Chagas: “É preciso dar cartão vermelho para a desigualdade em Porto Alegre”

Para o ex-árbitro, hoje pré-candidato, o racismo brasileiro é “o crime perfeito” pois não leva o criminoso à prisão

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Para Márcio, a educação aliada com o esporte é uma grande ferramenta de transformação - Reprodução Facebook

Durante seus 44 anos, o ex-árbitro e ex-comentarista de arbitragem, Márcio Chagas, foi vítima e testemunha reiterada do racismo. “Matar negro não é crime. É adubar a terra”, chegou a ouvir. Em 2014, em Bento Gonçalves, antes mesmo de pisar no gramado, foi chamado de “macaco”, “negro de merda”, “ladrão” e instado a “voltar para a África”. Na saída, encontrou seu carro amassado, decorado com cascas de banana e com bananas entupindo o cano de descarga. Era o único negro apitando no Campeonato Gaúcho.

Farto, deixou a profissão e foi contratado pela RBS TV, onde também era o único comentarista negro. Continuou a ser xingado nos estádios. Em litígio com sua chefia, foi demitido. Filiou-se ao PSOL e hoje disputa a vice-prefeitura de Porto Alegre na chapa encabeçada pela deputada Fernanda Melchionna. Nesta conversa, ele conta de sua admiração por figuras como Muhammad Ali, Malcolm X e Martin Luther King, trata das diferenças entre os negros nos EUA e no Brasil e fala sobre suas prioridades para a Capital.

Brasil de Fato RS - No manifesto de apoio à pré-candidatura do PSOL, afirma-se que você está preparado para “dar um cartão vermelho” à desigualdade e à segregação na cidade. O que seria este cartão vermelho?

Márcio Chagas - Esse cartão vermelho simboliza uma luta histórica por igualdade. Porto Alegre se caracteriza por ser a capital mais segregadora do país, onde o índice de desenvolvimento humano dos bairros considerados de elite se equiparam com a Suíça, e os bairros considerados periféricos se equiparam com a Bolívia. Por essa amostra o cartão vermelho é urgente na Capital dos gaúchos.

BdFRS - Você foi vítima de atos racistas como árbitro e como comentarista. Está preparado para enfrentar novas manifestações de racismo enquanto candidato?

Márcio - Quem nasce negro está preparado desde a infância para enfrentar atos racistas. Infelizmente, o racismo é um crime perfeito. Quem denuncia se torna o vilão e quem comete se torna a vítima. Hoje em dia, os racistas emitem um pedido de desculpas e ficam impunes. O mito da democracia racial e a falta de representatividade no judiciário permitem que seja um crime aceito, porém, como cidadão brasileiro, irei denunciar como faço há anos. Caberá à justiça cumprir as leis ou não.

BdFRS - Você percebe uma conexão entre o fato do racismo estar, agora, mostrando mais a sua cara e o fato de que na presidência da República está Bolsonaro, figura de ultradireita, que já se manifestou de forma racista muitas vezes?

Márcio - O racismo à brasileira sempre existiu, nunca foi velado como alguns costumam alegar. Ele acontece de forma recreativa através de “brincadeiras e piadas”, estrutural e institucional. A única diferença é que, hoje, os casos são filmados e parecem chocar quem sempre adotou o discurso como sendo mimimi e vitimismo dos negros. Quem nega o racismo são os racistas que aprenderam e continuam agindo com naturalidade, pois sabem que é o único crime perfeito no país, pois nunca houve prisão para quem comete esse crime.

BdFRS - Após sua carreira na arbitragem, você foi comentarista na RBS TV da qual foi afastado, oficialmente, porque teus posicionamentos estariam causando “desgastes” à emissora. Você quer falar sobre isso?

Márcio - Assim que as tratativas se iniciaram para eu ingressar na empresa em 2014, eu disse: “Venho pra cá, mas continuo sendo negro”.

Quem nega o racismo é o próprio racista

Minha luta continuará independente do lugar que eu esteja ocupando. Me calar seria uma covardia. Para eu estar aqui podendo falar sobre essa mazela histórica, muitos antepassados lutaram, assim como o movimento negro que busca igualdade e as garantias dos nossos direitos por lei.

BdFRS - Em algum momento da sua vida você acreditou naquilo que muita gente acredita, ou seja, que não existe racismo no Brasil? Existem até livros, como Não Somos Racistas, do Ali Kamel, diretor da Rede Globo, sustentando esta hipótese...

Márcio - Quem nega o racismo é o próprio racista. Basta observarmos um país com 56% da população auto declarada entre negros, pardos e mestiços. Angela Davis, que visita o Brasil há anos, diz: “A primeira coisa que faço quando chego no Brasil é ligar a televisão e observar que nada mudou.” Onde estão os negros desse país que só observamos nos esportes e eventualmente em alguns espaços culturais? Negar o racismo sempre foi uma artimanha para vender o mito da democracia racial para o resto do mundo.

Nossos pais nos treinam para enfrentarmos uma guerra diária

BdFRS - Queria que você descrevesse o primeiro momento na vida em que sentiu o é que ser negro no Brasil.

Márcio - Na infância, assim que entrei na escola aconteceu a primeira experiência. A criança negra sempre recebe algum apelido pejorativo. Muitas vezes não é convidada para os aniversários dos colegas e nas brincadeiras de rodas ninguém quer pegar na mão. Nossos pais nos treinam para enfrentarmos uma guerra diária.

BdFRS - O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou uma nova norma segundo a qual o financiamento do fundo eleitoral deve ser repartido proporcionalmente entre as candidaturas de brancos e negros a partir de 2022. Como avalia este avanço?

Márcio - Muito importante para que tenhamos oportunidades para ocuparmos os espaços de poder. Acredito que quando equipararmos nos cargos entre brancos e negros, haverá uma mudança positiva no país, inclusive muitas mudanças nas leis para garantir a cidadania e humanização dos negros.

BdFRS - Qual a reflexão que faz a respeito da intensidade da reação dos afrodescendentes nos EUA – onde são pouco mais de 10% da população – e no Brasil – onde representam cerca de 56% da população - diante da violência racista?

Márcio - Não tem como comparar os negros brasileiros com os negros americanos. Por aqui não há acesso e possibilidades educacionais que possam fazer com que o povo negro seja politizado. No Brasil, se adota um discurso de meritocracia, o velho lema de que quem quer consegue. E o negro que ousa se manifestar sempre é penalizado. Quando alguém atinge esse “sucesso”, torna-se o exemplo da exceção que se torna regra.

Na minha opinião, os negros americanos conseguem ter um pensamento de coletividade para que a comunidade negra possa crescer economicamente para competir de igual com os brancos. Não há falácia de democracia racial, o lema é “nós por nós” e isso fortalece a luta e forma lideranças conscientes e politizadas.

BdFRS - Pertencendo a um partido de esquerda, como avalia a maneira como a esquerda tem se preocupado com a questão racial no Brasil?

Márcio - Nos últimos anos, as políticas afirmativas possibilitaram o acesso das ditas minorias que são as maiorias no Brasil. Vejo a esquerda mais preocupada em adotar as políticas afirmativas na busca por uma equidade racial em todos os espaços.

A educação aliada com o esporte é uma grande ferramenta de transformação

BdFRS - Sua trajetória está muito ligada à luta antirracista. Mas gostaria que você falasse, além disso, de suas ideias políticas e sociais. Que figuras admira dentro ou fora do Brasil, quais personagens ou fatos colaboraram para a sua formação política?

Márcio - Sou professor de Educação Física, trabalhei na rede municipal de Esteio por quase 10 anos. Também trabalhei no Grêmio Náutico União e na Escola La Salle Santo Antônio. Vejo a educação aliada com o esporte como uma grande ferramenta de transformação e formação dos cidadãos. Através do esporte pude estudar como aluno bolsista tanto na escola como na universidade.

Admiro a postura que Muhammad Ali , Jesse Owens, Aida Santos, Malcolm X, Martin Luther King, Mandela, Zumbi, Racionais MC’S, Abdias do Nascimento, Obama, Dandara, meus pais etc. Todos contribuíram bastante para minha conscientização política e principalmente por fazer eu me entender como negro em um país tão racista como o Brasil.

BdFRS - O PSOL é sua primeira filiação partidária ou já pertenceu a outro partido anteriormente?

Márcio - O PSOL é minha primeira filiação, sempre fui politizado, porém não partidário.

BdFRS - Quais são, a seu ver, os maiores problemas e as prioridades de Porto Alegre hoje?

Márcio - Diálogo com os municipários, a educação que teve um desmanche nos últimos anos, saúde que está cada vez mais precária, segurança pública, transporte público, esporte e cultura. Teremos muito trabalho pela frente.

Edição: Marcelo Ferreira