Minas Gerais

Despejo MST

Starbucks deu selo de boas práticas a produtor que pode ser beneficiado por despejo

Empresa é uma das 4 que concedem certificado a João Faria da Silva, que pode se beneficiar do despejo em Campo Grande

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Morados do quilombo campo grande
Moradores do acampamento protestaram contra o despejo e contra o governador de Minas, Romeu Zema - Créditos da foto: Daniel Camargos/Repórter Brasil

A reintegração de posse de uma área ocupada pelo MST em Campo do Meio (MG) pode beneficiar um dos maiores produtores de café do Brasil que possui certificações de boas práticas, entre elas a C.A.F.E. Practices, da rede Starbucks.

A certificadora UTZ suspendeu seu selo após reintegração de posse na área

João Faria da Silva é dono do grupo exportador Terra Forte e de diversas fazendas, entre elas a Campo Verde, que fica ao lado do acampamento Quilombo Campo Grande, onde houve a reintegração em plena pandemia do novo coronavírus, em 13 de agosto. Na ocasião, 14 famílias foram despejadas e lavouras, casas e uma escola, destruídas, após autorização judicial.


Além de milho, feijão, mel, hortaliças, verduras e legumes, o produto mais conhecido produzido pelo MST em área alvo de disputa na Justiça é o café agroecológico Guaií / Créditos da foto: Caio Castor/Repórter Brasil

Silva mantém contrato de arrendamento futuro da área com Jovane de Souza Moreira – que reivindica na Justiça a retirada dos sem-terra. O MST ocupa a propriedade da falida usina Ariadnópolis, há 22 anos, com cerca de 450 famílias para plantio de café e cana-de-açúcar. O acordo entre Silva e Moreira foi usado pelo juiz para justificar a desocupação, por ser um “rentável contrato de arrendamento rural”.

Para Gustavo Ferroni, coordenador de direitos humanos e setor privado da Oxfam Brasil, a expansão de terras por meio de arrendamento, como quer João Faria da Silva, exige consulta livre, prévia e informada das famílias impactadas que ocupam o terreno em Campo do Meio. As empresas certificadoras não poderiam se omitir de analisar as atividades de um grupo econômico como um todo, mesmo que a concessão de selos seja dividida por unidades produtivas, avalia Ferroni.

“É claro que uma expansão de novas terras não está necessariamente ligada à operação produtiva certificada”, explica. “Pode não estar no escopo da norma que certificou a fazenda, mas pode ser uma violação do próprio princípio do selo”, afirma.

Procurada pela Repórter Brasil, a Starbucks não deu detalhes sobre a certificação. Megan Lagesse, gerente de comunicações e relações públicas da empresa para a América Latina e o Caribe, disse que não poderia relevar quais fazendas do grupo Terra Forte são certificadas ou o período de validade dos selos.

Questionada se a disputa pela área em Campo do Meio poderia afetar a certificação, a gerente disse que não poderia comentar o assunto, porque a empresa ainda está em busca de mais detalhes sobre o processo. “Isso é novo para nós e ainda estamos trabalhando para entender todos os detalhes”, explica Lagesse. A certificação significa que a fazenda está apta a vender para a empresa, mas, segundo ela, a Starbucks não compra café de João Faria da Silva desde maio de 2019.

Repórter Brasil entrou em contato com escritório de advocacia que representa o empresário João Faria da Silva e a Terra Forte. Em 2019, o grupo empresarial entrou com um pedido de recuperação judicial com R$ 1,1 bilhão em dívidas. Até o fechamento desta reportagem, os pedidos de entrevista não foram atendidos.

Outra certificadora suspendeu selo por causa da reintegração

Além da certificação C.A.F.E. Practices, da rede Starbucks, o grupo de João Faria da Silva também ostenta outros selos de boas práticas, como UTZ, Rainforest Alliance e 4C. A UTZ, que está em processo de fusão com a Rainforest Alliance, decidiu suspender o selo da fazenda Campo Verde, que havia sido concedido em 17 de abril deste ano, após a reintegração de posse.

“Deve haver uma mediação e elaboração de um acordo amigável entre as partes para que a certificação seja concedida”

Segundo representantes dos dois selos no Brasil, a documentação fornecida pela certificadora contratada para a auditoria da fazenda não menciona conflitos na área ao lado da propriedade. Cassio Souza, gerente da Rainforest Alliance, explica que o selo foi suspenso até que uma investigação interna seja concluída. “Nessa investigação legal [da empresa certificadora] não nos foi informado esse conflito, e a gente quer entender o porquê, se foi uma omissão do produtor ou se foi uma negligência da certificadora.”

Mariana Barbosa, diretora da Rainforest Alliance no Brasil, afirma que, caso a informação seja confirmada, os ocupantes deverão ser incluídos em um processo de mediação do conflito para que a fazenda Campo Verde volte a obter o selo UTZ. “Deve haver uma mediação e elaboração de um acordo amigável entre as partes para que a certificação seja concedida”, explica.

A certificação só seria retirada definitivamente se a área em disputa com os sem-terra fosse a mesma da fazenda de João Faria da Silva. “A certificadora pode não ter nos informado porque, de fato, essa situação não tem nada a ver com as áreas que estão dentro do escopo da certificação”, ressalta Souza.

Armazém também é certificado

A Repórter Brasil verificou que a trading Terra Forte segue certificada. Para os representantes da UTZ e Rainforest Alliance no Brasil, a certificação da Terra Forte atesta apenas que a empresa é capacitada a manusear e comercializar cafés de fazendas certificadas – a chamada certificação da cadeia de custódia.

“O escopo da fazenda do João Faria não invade o escopo da cadeia de custódia do João Faria, embora ele seja o dono”

Mariana Barbosa afirma que esse tipo de certificação precisa garantir apenas que os cafés certificados tenham rastreabilidade e controle de qualidade dentro do armazém de João Faria da Silva. “A gente não faz uma observação se esses armazéns fazem boas práticas”, explica. “Elas só precisam não misturar o café certificado com outros não certificados”.


A fazenda era a sede da usina Ariadnópolis Açúcar e Álcool S/A, administrada pela Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), que faliu em 2002 sem pagar indenizações trabalhistas / Créditos da foto: Caio Castor/Repórter Brasil

Para Cassio Souza, é preciso separar as possíveis irregularidades nas fazendas ou conflitos fundiários da certificação da Terra Forte. “O escopo da fazenda do João Faria não invade o escopo da cadeia de custódia do João Faria, embora ele seja o dono”, pontua. “Os problemas e toda repercussão do caso ocorreram em nível de fazenda, e não no escopo cadeia de custódia”, afirma.

A Terra Forte também atua como comprador intermediário de café certificado pelo selo 4C, sigla para Código Comum para a Comunidade Cafeeira. Por e-mail, Gustavo Bacchi, diretor da 4C, explica que nenhuma fazenda de João Faria da Silva possui o selo da empresa, com sede na Alemanha. “A Terra Forte vende cafés com origem de produtores certificados pela 4C, por isso ostenta o selo no site”. Bacchi afirma que o empresário era certificado pela 4C até junho de 2019, mas não explica qual fazenda possuía o selo, nem por que ele foi retirado.

Como comprador intermediário, a Terra Forte recebe auditorias de representes da 4C. “As auditorias visam confirmar o cumprimento das regras de cadeia de custódia ou investigar eventuais suspeitas ou denúncias relacionadas ao descumprimento das regras do sistema 4C”, afirma Bacchi. As auditorias não consideram o histórico de conflitos fundiários nem os planos de expansão de João Faria da Silva na região do despejo.

MST produz café orgânico na área ocupada

A fazenda Ariadnópolis era a sede da usina Ariadnópolis Açúcar e Álcool S/A, administrada pela Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia). A Capia decretou falência em 2002 sem pagar indenizações trabalhistas. Seis anos antes, quando as atividades da usina foram suspensas, ex-funcionários ocuparam a fazenda e o MST fundou o acampamento Quilombo Campo Grande.

No ano passado, segundo o MST, foram produzidas 8,5 mil sacas de café

Cerca de 450 famílias vivem hoje no local, divididas em 11 acampamentos. Dos produtos agrícolas cultivados no terreno, o mais conhecido é o café agroecológico Guaií, marca criada em 2010. No ano passado, segundo o MST, foram produzidas 8,5 mil sacas de café. Na região, também há lavouras de milho, feijão, mel, hortaliças, verduras e legumes e criação de aves e bovinos para subsistência.

O empresário Jovane de Souza Moreira comprou o que sobrou da usina e, desde então, busca arrendar a área para produção de café e cana-de-açúcar. No dia 13 de agosto, ele conseguiu recuperar 62 hectares. No total, a área onde estava a usina possuía 363 hectares – cerca de 300 hectares foram tomados pela União para saldar dívidas da empresa e destinados à reforma agrária. Restam 3,6 mil hectares a serem recuperados, e a parceria com João Faria da Silva é vista como a solução dos problemas de Moreira.

Caso a reintegração seja autorizada pela Justiça, mais de 400 famílias terão que sair do local que ocupam há 22 anos

Em 2016, a Capia homologou um plano de recuperação judicial que inclui o arrendamento de aproximadamente 3,1 mil hectares da Fazenda Ariadnópolis para a Jodil Agropecuária e Participações Ltda, de João Faria da Silva. O contrato de arrendamento com o fazendeiro paulista prevê o plantio de café e cana-de-açúcar e tem validade de seis anos.

Moreira tem dois anos para fazer com que o processo que prevê a reintegração de toda a Fazenda Ariadnópolis seja concluído, antes que o contrato com a Jodil perca a validade. Caso a reintegração seja autorizada pela Justiça, mais de 400 famílias terão que sair do local que ocupam há 22 anos.

Segundo Tuíra Tule, integrante da direção do MST em Minas Gerais, o acordo entre Moreira e a empresa do dono da Terra Forte é o principal entrave para um acordo com as famílias que ocupam a área. “O grande financiador da não resolução do conflito pela terra aqui é o João Faria da Silva”, afirma.

Oxfam defende que certificação avalie práticas de todo o grupo econômico

Na avaliação de Ferroni, da Oxfam, para o processo de certificação, todo o grupo empresarial deve ser considerado. “É preciso ter um mecanismo em que violações de direitos humanos em todas as partes do negócio possam ser consideradas, porque isso pode demonstrar que determinada empresa, mesmo com um empreendimento certificado, não segue os princípios que estão por trás daquela norma”, pontua Ferroni, da Oxfam.

Ao citar o caso da Fazenda Campo Verde, o coordenador da Oxfam Brasil questiona a separação feita entre os negócios de João Faria da Silva com boas práticas e aqueles que ameaçam mais de 400 famílias sem-terra em Campo do Meio.

“A intenção da UTZ é criar um processo de produção agrícola mais sustentável e justo, e não só garantir as boas práticas de um grão de café. Se funcionar desta maneira, o empresário pode ter duas propriedades adjacentes, onde uma é uma desgraça, com trabalho escravo, por exemplo, e a outra está bonita porque é UTZ”, finaliza.


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