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ARTIGO

Dia do Médico: o que comemorar?

Médico de Família, Henrique Medeiros pondera sobre o Dia do Médico/a, 'corporação guiada por interesses particularistas'

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Paciente recuperada de Covid-19 no “corredor da vitória” - Foto: Michell Mello / Secom AM

Por Henrique Medeiros*

Em 18 de outubro comemora-se o dia do médico. Ao longo dos dias que cercam tal data, é bastante comum a celebração de eventos e confraternizações, bem como a publicação de textos e vídeos que emulam a profissão, resgatando seus símbolos e consagrando sua herança hipocrática. 

Essa ritualística cumpre, fundamentalmente, o papel de reforçar uma identidade corporativa, velando as diferenças oriundas da diversidade de inserção no mercado de trabalho. O crescente assalariamento médico, o cada vez mais residual exercício liberal da medicina e o peso progressivamente maior do empresariado médico (inclusive com capital estrangeiro) são potenciais geradores de heterogeneidade de interesses políticos e econômicos. 

Ao se incensar as convergências da formação profissional, todavia, contorna-se tal pluralidade, funda-se um falso consenso e reforça-se uma coesão, no plano ideológico, de uma corporação guiada, no entanto, por interesses particularistas nem sempre dissimulados. Em 2020, a pandemia da Covid-19 lançou luz sobre esse fenômeno de maneira nunca antes tão evidente. 

A semana do médico foi marcada por merecidas homenagens a colegas falecidos durante a pandemia e seus familiares.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde, até o dia 16/10, eram 38.394.169 casos confirmados e 1.087.047 mortes em todo o mundo; nas Américas, estavam 18.185.839 casos (47,36%) e 596.312 óbitos (54,85%). O Brasil, por sua vez, respondia por 5.140.863 casos (ou seja, 13,38% dos casos no mundo e 28,26% deles no continente) e 151.747 mortes (13,9% dos óbitos no mundo e 25,44% deles nas Américas). 

São números aterradores, para os quais a atitude negacionista da presidência da república e a sua sabotagem às iniciativas de estados e municípios contribuiu de modo decisivo. A acefalia do Ministério da Saúde, seu loteamento a militares completamente alheios ao Sistema Único de Saúde, a ausência de coordenação nacional das ações, a não execução do orçamento de guerra, o estímulo (inclusive financeiro) a adoção de terapêuticas sem evidências científicas, o deboche e desrespeito às vítimas e seus familiares, entre outros fatos gravíssimos que não cabem no espaço destas poucas linhas, são motivos para a indignação e a reação organizada por parte da sociedade e, em especial, dos profissionais de saúde. 

Entretanto, o que se verificou por parte das entidades médicas? A mais completa omissão e conivência. O silêncio obsequioso revela a cumplicidade com um projeto político que banaliza a morte e degrada a vida de milhões de brasileiros, especialmente os mais pobres e vulneráveis. Em troca de migalhas de espaço no poder, supostamente expressão da “valorização” da categoria médica na interlocução com o governo, não se viu uma única manifestação pública contundente contra os descalabros perpetrados nestes oito meses de pandemia no país. 

Nem mesmo a mais elementar defesa da prática médica baseada em evidências foi feita, quando todos os grandes estudos publicados nas mais renomadas revistas científicas do planeta mostravam a inutilidade da cloroquina e afins, enquanto o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército gastava R$ 1,5 milhão para aumentar em 100 vezes a produção do medicamento. 
Ao passo que outras categorias, como a enfermagem, contaram com a participação ativa de suas entidades na denúncia contra a ausência, por parte do poder público, de proteção aos trabalhadores da saúde na linha de frente de combate à Covid-19, os conselhos de medicina e associações médicas, quando muito, emitiram tímidas e dúbias notas públicas. 

Ao tempo em que enfermeiros e enfermeiras organizavam atos de protesto (e eram agredidos por militantes bolsonaristas) pelas mortes de seus colegas que, ainda em junho, faziam do Brasil o país em que eles mais morriam no mundo (respondendo por 30% dos óbitos no mundo), as entidades médicas calavam ante o compromisso que carregam em sustentar esse governo.

Essa indisfarçada aliança com o bolsonarismo é o ponto de chegada do processo político dos últimos anos. Remete à oposição às iniciativas governamentais que buscavam democratizar o acesso à assistência médica, em especial o Programa Mais Médicos para o Brasil, interpretadas como ameaças ao poder da corporação de regular o mercado de trabalho, ainda que às custas da vida de milhões de brasileiros dos grotões do país  e periferias das grandes cidades. Passa pela posição ativa para a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff em 2016, inclusive financiando atos públicos e peças publicitárias. E marca presença na propaganda ativa às candidaturas bolsonaristas nas eleições de 2018. 

O comprometimento com as forças políticas reacionárias de hoje faz parte de mais uma triste página da história das entidades médicas, que se soma ao apoio e engajamento no golpe de 1964 e ao regime militar que se seguiu, como bem expressam os posicionamentos da Associação Médica Brasileira (AMB) em diversos editoriais de suas publicações na década de 1960. 

O silêncio obsequioso revela a cumplicidade com um projeto político que banaliza a morte e degrada a vida de milhões de brasileiros

A posição de linha auxiliar do governo se reflete na completa ausência, por exemplo, de um monitoramento dos impactos da pandemia na saúde do trabalhador médico. No início de setembro, a imprensa anunciava (citando o Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo como fonte) o acúmulo de 244 óbitos entre médicos no Brasil. Por sua vez, o boletim epidemiológico nº 33 do Ministério da Saúde apontava 33.032 casos confirmados e 62 mortes de profissionais médicos até o final daquele mês. 

A discrepância é evidente e remete à ausência de transparência que tem marcado a condução da pandemia pelo governo federal, o que deveria motivar as entidades médicas a uma postura mais vigilante, no mínimo.

Apesar da omissão das entidades médicas, a semana do médico foi marcada por merecidas homenagens a colegas falecidos durante a pandemia e seus familiares. Mas as condolências que tais entidades manifestam vêm marcadas pelo signo da conivência e não poderiam ser expressão mais acabada do significado da palavra hipocrisia. 

Entretanto, as entidades médicas não expressam necessariamente a diversidade de posições dos profissionais. Há aqueles que, rompendo com as pretensões de construção de um falso consenso a serviço de interesses alheios, mantêm-se lúcidos e críticos à postura vexaminosa de tais entidades.  E se o luto e o pesar já tornavam proibitivo falar em comemoração neste dia 18, a vergonha que essas entidades proporcionam a todos os médicos e médicas que se indignam com o desprezo pela saúde e pela vida dos brasileiros por parte do atual governo impede qualquer outro sentimento que não seja tristeza. 

*Henrique Medeiros é Médicos de Família e Comunidade Doutorando em Saúde Pública 

 

Edição: Cida Alves