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Como pode a inflação estar baixa e os preços das mercadorias nas alturas?

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Preços altos não significam “alta dos preços”. Inflação é um processo contínuo e generalizado de aumento dos preços em uma economia, e não está ocorrendo isso atualmente - Ronaldo Schemidt/AFP
O que temos é uma concentração de preços altos em alguns dos itens que compõem o índice de inflação

Nos últimos tempos tenho sido, sistematicamente, questionada com relação à  inflação baixa, por um lado, e – por outro – a sensação generalizada de que as mercadorias estão cada vez mais caras, especialmente aquelas encontradas nas prateleiras dos supermercados.

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Dando um passo atrás, vamos entender o que é inflação: inflação é um termo econômico que serve para avaliar o aumento do preço das mercadorias. Ainda que a inflação seja um único fenômeno, ela tem – por outro lado – pelo menos duas causas principais.

A primeira delas refere-se à precificação das mercadorias e serviços que é fruto da lei da “oferta e da procura”. Assim, se existem mais pessoas querendo tomate, por exemplo, e pouco tomate sendo ofertado na feira, o seu preço tende a aumentar. Isso é o que conhecemos como “inflação de demanda” e normalmente não é o caso da inflação brasileira. A segunda causa da inflação refere-se à “inflação de custos”.

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Nesse caso, quando componentes e insumos para fabricar as mercadorias tem seus custos elevados, esse aumento é repassado para preço final do produto. Por exemplo, a cerveja que você toma no bar precisou permanecer horas dentro de refrigerador, ou precisou ser transportada da distribuidora para o boteco.

Assim, reajustes na tarifa de energia elétrica e no valor do combustível são “custos” que – se aumentados – vão ser repassados para o preço final da cerveja. Ou seja, a cerveja aumentou o preço, mas não foi porque mais pessoas resolveram bebê-la, mas sim pela pressão do aumento dos seus custos.

Celso Furtado sistematizou uma interpretação de que a inflação brasileira era, sobretudo, ligada aos desequilíbrios no balanço de pagamento brasileiro, pela nossa condição de vulnerabilidade externa.

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Assim, elementos como a taxa de câmbio exercem forte influência no preço final das mercadorias. Vamos ficar no mesmo exemplo da cerveja: para ser produzida ela precisou de trigo.

O trigo é, majoritariamente, importado. Isso significa que em períodos como o atual, de forte desvalorização cambial, o trigo fica mais caro em reais, e isso é repassado ao preço final fazendo a cerveja, mais uma vez, ficar mais cara e pesar mais no nosso bolso.

Se há uma elevação de preços, parte substancial da renda dos mais pobres fica comprometida

O que estamos assistindo atualmente não é uma forte escalada inflacionária. A inflação, no acumulado de 12 meses, ainda nem chegou no centro da meta, quem dirá no teto da meta. Isso porque, embora algumas mercadorias estejam mais caras, a paralisia geral da economia, com alto desemprego e redução do consumo, não é suficiente para que as pessoas façam demanda por mercadorias e serviços.

Preços altos não significam “alta dos preços”. Inflação é um processo contínuo e generalizado de aumento dos preços em uma economia, e não está ocorrendo isso atualmente.

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O que temos é uma concentração de preços altos em alguns dos itens que compõem o índice de inflação. O índice de preços ao consumidor amplo (IPCA), avalia uma ceste de bens e serviços consumidos por famílias que recebem entre 1 e 40 salários mínimos. No entanto, o tipo de consumo dessas famílias é deveras distinto.

O aumento do preço dos produtos da cesta básica pesa muito mais no bolso de quem usa quase toda a sua renda para adquiri-los

Por isso a inflação é sentida mais entre aqueles que ganham menos. Isso porque os trabalhadores da base da pirâmide social gastam tudo o que ganham. Ou seja, a totalidade dos seus rendimentos vai para o consumo. Assim, se há uma elevação de preços, parte substancial da renda dos mais pobres fica comprometida. Já quem ganha 40 salários mínimos poupa uma parte expressiva desse valor, sendo preservada da desvalorização inflacionária.

Outra diferença é que os trabalhadores de baixa renda consomem, fundamentalmente, “bens” e dentro desse universo, os bens de primeira necessidade, especialmente alimentos. Assim, o aumento do preço dos produtos da cesta básica – fortemente influenciado pela desvalorização cambial – pesa muito mais no bolso de quem usa quase toda a sua renda para adquiri-los.

Já os mais ricos concentram os seus gastos – basicamente – em “serviços”, como manicure, cabelereiro, esteticista, empregada doméstica, motorista, escola privada, entre outros.

O que tem ocorrido é justamente o fato de que apenas os “bens” tiveram elevação de preços, enquanto os serviços – por outro lado – estão custando mais barato. Em função da pandemia, muitos serviços pessoais foram dispensados, e agora esses trabalhadores fazem “promoção” do seu serviço para voltarem a trabalhar, por exemplo: “faça a unha da mão e ganhe a unha do pé!” é um exemplo de queda no valor do serviço prestado pela manicure.


A inflação, para as rendas mais baixas, está muito mais elevada, justamente porque esses trabalhares concentram seu consumo nos bens de primeira necessidade / Reprodução IPEA - Inflação por faixa de renda - Setembro/2020

Esse gráfico demonstra bem esse fenômeno. A inflação, para as rendas mais baixas, está muito mais elevado, justamente porque esses trabalhadores concentram seu consumo nos bens, especialmente aqueles que sofrem o efeito da desvalorização cambial.

Já para as rendas mais altas, não só a inflação é mais amena quanto, no último caso, há uma “deflação”, justamente porque os mais ricos consomem, fundamentalmente, serviços.

Para piorar esse quadro, pense que quem presta os serviços pessoais a famílias mais ricas são, exatamente, aqueles que já tem uma parcela grande da sua renda comprometida com o aumento dos bens de primeira necessidade.

Ou seja, os mais pobres têm sofrido mais não só porque sua cesta de consumo está mais cara, senão que – também - porque seu rendimento está mais baixo, em função da queda no valor dos serviços.

Edição: Leandro Melito