Minas Gerais

DIREITOS

Artigo | A centralidade do sofrimento da vítima

É preciso a aprovação do projeto de lei da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
MAB 5 anos sem reparação
"O princípio da centralidade das pessoas atingidas não foi até aqui aplicado na prática" - Créditos: Nívea Magno/Midia NINJA

o colapso chegou sem dizer palavra

arrombando a porta

quando fomos tentar consertar

já era tarde

muito tarde

[…]

rio após rio após rio após rio

mortos, arruinados

das bacias hidrográficas

apenas longos caminhos de sujeira e lama

[…]

décadas e mais décadas de mineração predatória

rejeitos contaminados

arsênio alumínio manganês bário

mercúrio chumbo cromo cádmio

Poema de Fabiano Calixto (Memórias de um homem-bala)

O desastre na bacia do Rio Doce, tal como o colapso mencionado por Fabiano Calixto, também chegou sem dizer palavra às suas vítimas. Arrombou portas. Também vidas, algumas delas depois daquele 5 de novembro de 2015 que ainda não passou e que até hoje adoece e mata.

As vítimas devem ocupar posição central no processo de reparação. Sem essa centralidade, não há verdadeira reparação. Isso se dá não apenas no âmbito interno.

O mineiro Antônio Augusto Cançado Trindade, quando juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Servellón García e Outros versus Honduras, por exemplo, ponderou que, “por mais breves e efêmeras que tenham sido as vidas dos abandonados do mundo, e torturados e assassinados com brutalidade por seus semelhantes, ocupam estes, no entanto, como vítimas, uma posição central no Direito Internacional dos Direitos Humanos”.

Atualmente na Corte Internacional de Justiça da Haia, esse grande magistrado, no caso “Meninos de rua”, julgado pela Corte Interamericana, lembrou que “sentença (do latim sententia, derivada etimologicamente de ‘sentimento’) é algo mais que uma operação lógica enquadrada em limites jurídicos predeterminados”.

Lamentavelmente, a brutalidade humana é causa de desastres e a insensibilidade de determinados atores do processo de reparação os perpetua e os renova na vida de suas vítimas. Sentir a dor das pessoas atingidas traz a possibilidade de fazer estancar o desastre que se encontra em curso na bacia do Rio Doce.

No caso Rio Doce, a centralidade das pessoas atingidas, como princípio norteador de todas as atividades e medidas adotadas, na perspectiva de se garantir o acesso à justiça e a participação informada das pessoas atingidas no processo de reparação integral dos danos sofridos e de garantia dos direitos de que são titulares, foi expressamente prevista – após longas rodadas de negociação, e de forma até pioneira – em um dos acordos (o Termo Aditivo ao TAP, de 16/11/2017) firmados pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) com as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton Brasil.

Para a implementação do acordo mencionado, ao esforço do MPF e do MPMG somou-se o das Defensorias Públicas da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo, assim como para implementar outro que lhe sucedeu, mas o fato é que o princípio da centralidade das pessoas atingidas não foi até aqui aplicado na prática.

Um exemplo: em nada menos que em dezesseis territorialidades, ao longo da bacia do Rio Doce, as assessorias técnicas independentes, previstas em tal termo aditivo, sequer foram contratadas, depois de escolhidas pela população atingida, para apoiá-la e viabilizar sua participação qualificada.

O princípio da centralidade do sofrimento da vítima poderá facilitar a reparação eficaz, célere e integral dos atingidos

Anote-se que, no processo de reparação do desastre da Mina do Córrego do Feijão – também de propriedade da onipresente Vale –, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, o acordo firmado, em 20/02/2019, pelos Ministérios Públicos e pelas Defensorias, federais e do Estado de Minas Gerais, efetivamente resultou, após decisão do Juiz de Direito competente, no funcionamento das assessorias técnicas.

A previsão expressa, na legislação brasileira, do princípio da centralidade do sofrimento da vítima, poderá facilitar a compreensão de critérios indispensáveis a uma reparação que se mostre eficaz, célere e integral (isso no plano normativo, pois, no caso do desastre ocorrido na bacia do Rio Doce, já passou o tempo da celeridade ou da razoabilidade da duração do processo).

Por isso, é preciso buscar junto aos parlamentares brasileiros a aprovação do Projeto de Lei nº 2.788/2019, que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens – que, após aprovação pela Câmara dos Deputados, agora tramita no Senado –, conferindo a devida ênfase a esse princípio, essencial a que a reparação seja construída a partir da perspectiva dos titulares dos direitos violados.

É algo que ainda parece, por mais natural que seja, causar muito espanto e enorme resistência em nosso país.

Edmundo Antonio Dias Netto Junior é procurador regional dos direitos do cidadão substituto em Minas Gerais e membro das forças-tarefa Rio Doce e Brumadinho do Ministério Público Federal

Artigo atualizado para o marco de cinco anos do desastre, ainda em curso na Bacia do Rio Doce. Publicado pelo autor na edição de março de 2020 do jornal A Sirene, criado por vítimas da Vale, BHP Billiton e Samarco.

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Edição: Elis Almeida