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Conteúdo local: a disputa para além do petróleo

A Lava Jato e o impeachment de Dilma foram os principais responsáveis pela reconfiguração no cenário de exploração

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
O que ainda pouco se discute é “o mundo invisível do petróleo”, formado por empresas fornecedoras de máquinas e equipamentos destinados à exploração - Haidar Mohammed Ali/AFP

Guerra por petróleo. Alguns pleonasmos são necessários, principalmente neste momento histórico de negacionismos e polarização ideológica. Diante disso, é possível afirmar que o cenário era, sim, de guerra, apesar de ser impossível dissociar a indústria bélica e do petróleo nas últimas décadas. E como toda operação militar, não poderiam faltar os elementos centrais que a caracterizam: ingerência estrangeira, aliança com a burguesia nacional e muita espionagem.

Essa arapuca começou a ser gestada no ano de 2010 e tinha como foco o Brasil, que vivia um contexto político, social e econômico muito diferente de agora, após transcorrida uma década. Depois de dois mandatos de muita popularidade de Lula, o Partido dos Trabalhadores (PT) encaminhava sua permanência no Executivo nacional a partir da eleição da primeira mulher a ocupar a Presidência da República, a economista Dilma Rousseff.

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Dentre outros fatores, sua eleição pode ser explicada pela até então menor taxa de desemprego da série histórica da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fechando o ano com apenas 5,3% de desocupados no país – o que contrasta com os 14% do último levantamento divulgado em outubro de 2020.

Já no plano econômico, além de toda a efervescência dos programas sociais destinados à inserção da população de baixa renda no mercado de consumo, houve um fator determinante para os episódios que serão narrados a seguir: quatro anos antes, em 2006, a Petrobrás havia sido responsável pela maior descoberta de petróleo do século XXI.

Por meio de ousados investimentos em pesquisa e prospecção, a maior estatal brasileira descobriu enormes quantidades de petróleo em águas ultraprofundas, anteriores a uma robusta camada de dois quilômetros de sal, batizado de pré-sal. Até então com 14 bilhões de barris em reservas, a Petrobrás adquiria seu “passaporte para o futuro” com um volume de óleo e gás estimados em até 200 bilhões de barris no pré-sal. Entretanto, toda essa riqueza provavelmente geraria cobiça. E gerou.

De volta ao ano de 2010, Brasil, nação comandada por um operário nordestino que daria lugar à primeira mulher a ocupar o cargo mais alto da política nacional, e que havia lutado com armas contra a ditadura militar que assolou o país por décadas (1964-1985). Neste cenário, diálogos de diplomatas norte-americanos, vazados pelo site Wikileaks, são sintomáticos para mostrar a operação de guerra que se montou com o objetivo de quebrar qualquer controle estatal sobre o pré-sal.

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Em telegrama intitulado “A indústria do petróleo vai conseguir combater a lei do pré-sal?”, do final de 2009, o consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro demonstrou as preocupações e movimentações de agentes públicos e privados norte-americanos para acessarem a recém descoberta de petróleo. A carta detalha o diálogo da diretora da Chevron, Patrícia Pardal, com o então virtual candidato à presidência José Serra (PSDB), que prometia acabar com o regime de partilha – criado pelo governo Lula para garantir maior controle e autonomia do Estado sobre o pré-sal – caso fosse eleito no ano seguinte.

Entretanto, o plano de ter um aliado na presidência foi por água abaixo. E essa derrota dos Estados Unidos foi justamente o gatilho que acionou uma série de outras movimentações políticas e jurídicas com o objetivo de abrir essas reservas para a exploração de suas empresas.

Todo o desenrolar posterior está cada vez mais conhecido do grande público, principalmente com os recentes vazamentos do portal The Intercept que comprovam a cooperação do Departamento de Estado dos EUA e do FBI com procuradores da Operação Lava Jato. Posteriormente, o impeachment de Dilma Rousseff, levado à cabo por motivações políticas, sacramentou toda essa estratégia iniciada nos anos anteriores.

Perda da soberania

Para além da disputa pelo óleo e gás em si, o que ainda pouco se discute é “o mundo invisível do petróleo”, formado por empresas fornecedoras de máquinas e equipamentos destinados à exploração e desenvolvimento da cadeia produtiva do petróleo, também conhecidas como para-petroleiras.

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A Lava Jato, deflagrada em 2014, concentrou suas operações na investigação de possíveis irregularidades de contratos da Petrobrás com fornecedoras a partir de 2003, justamente o período em que as para-petroleiras internacionais, impactadas pela nova política de proteção aos produtores nacionais no governo Lula, perderam protagonismo no país.

De acordo com o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio De Janeiro (UFRJ), Iderley Colombini, o que está em jogo é uma disputa para além das reservas contidas no pré-sal. “Não se trata apenas de conquistar os lucros do petróleo brasileiro, mas sim de destruir qualquer condição do país vir a ter uma autonomia com as relações que a produção de petróleo condiciona”, opina.

No fatídico ano de 2010, o ex-presidente Lula havia aprovado o regime de partilha. Diferentemente do modelo de concessão, aprovado em 1997 pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), essa nova legislação impunha uma participação mínima de 30% da Petrobrás, que também seria a operadora única dos campos, nos consórcios de exploração do pré-sal.

Mas, somado a isso, os governos petistas iniciaram uma valorização das empresas brasileiras fornecedoras de máquinas e equipamentos por meio da política de conteúdo local. Essa é uma regra que estabelece uma porcentagem mínima de utilização da indústria brasileira na fase de exploração e desenvolvimento dos blocos adquiridos pelos consórcios, tanto no regime de partilha, como no modelo de concessão.

No regime de concessão, a diferença é drástica desde 2003, com a ascensão de Lula à presidência. A porcentagem de conteúdo local pulou de 39% na etapa de exploração e 54% na etapa de desenvolvimento, na 4ª rodada de licitação em 2002, para 79% e 86% respectivamente, na 5ª rodada de licitação em 2003.

O golpe também é visível nesta linha do tempo. Na 13ª rodada de licitação, em 2015, última antes do impeachment de Dilma Rousseff, a porcentagem de conteúdo local foi de 73% e 80% nas etapas de exploração e desenvolvimento, respectivamente. Já na 14ª rodada de licitação, em 2017, os números decaíram para 39% e 43%.

A mesma discrepância pode ser vista nos leilões do pré-sal ocorridos dentro do marco regulatório do regime de partilha. Único leilão que aconteceu durante o governo Dilma, em 2013, contou com porcentagem de 37% na etapa de exploração e 55% na etapa de desenvolvimento. Na rodada de licitação seguinte, em 2017, as porcentagens ainda se mantiveram altas, com 41% e 46%, respectivamente. Entretanto, uma mudança na política de conteúdo local fez com que a utilização da indústria brasileira despencasse nos leilões seguintes.


No regime de concessão, a diferença é drástica desde 2003, com a ascensão de Lula à presidência / Reprodução

Em 2017, essa política sofreu um revés. O então governo de Michel Temer (MDB), reduziu pela metade a exigência de conteúdo local nos leilões de óleo e gás. Para as áreas terrestres de exploração, o índice obrigatório passou a ser de 50%. Ainda reduziu para 18% a porcentagem para a exploração no mar e para 25% na construção dos poços. Além disso, diminuiu para 40% a exigência para sistemas de coleta e escoamento e 25% em unidades estacionárias de produção.

Além disso, José Serra finalmente cumpriu sua promessa à diretora da Chevron. O senador tucano conseguiu aprovar em 2016 o PLS 131/2015, que retirou o papel da Petrobrás como operadora única do pré-sal.

Para o coordenador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), Rodrigo Leão, estas duas mudanças quebraram toda a essência pensada para o setor pelos governos petistas nos anos anteriores. “Antes, a Petrobrás tinha que estar em todos os campos, com a aquisição de materiais brasileiros. Por isso, o ritmo de evolução da produção seria dado por esse viés. A Petrobrás daria o ritmo da nossa indústria que, por outro lado, influenciaria no ritmo de exploração do pré-sal. Quando há a redução do conteúdo nacional e a retirada da Petrobrás de todos os leilões, o coração deste processo é quebrado”, explica.

Lobby das para-petroleiras

Nos anos posteriores ao golpe de 2016, todo o marco institucional do petróleo foi alterado no Brasil. Com a flexibilização da política de conteúdo local, as empresas brasileiras de fornecimento de serviços, máquinas e equipamentos sofreram um grande impacto. Segundo estudo da KPMG, de 2018, aproximadamente 40% das para-petroleiros nacionais fecharam as portas desde 2014.

Um dos setores mais afetados foi a indústria naval, que saiu de 17.982 trabalhadores em 2007, para o seu apogeu com 61.189 postos de trabalho em 2014, e sua decadência com 19.777 no ano de 2018. Literalmente, um retrocesso de 10 anos em um ramo da indústria que estava diretamente atrelado à política de conteúdo local.

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Por outro lado, de acordo com Colombini, “as grandes para-petroleiras internacionais iniciaram uma política extremamente agressiva, a qual poderia ser descrita, dentro dos manuais de economia, como dumping, juntamente com forte processo de fusão e aquisição”.

As grandes para-petroleiras – principalmente Halliburton, Baker Hughes e Schlumberger – passaram a praticar preços nas licitações muito inferiores ao padrão do mercado, mesmo tendo como implicação prejuízos no curto prazo que obrigaram as matrizes a realizar aportes financeiros.

“O valor médio dos contratos da Halliburton com a Petrobrás no período de 2014 até 2019 teve uma redução de 36% em relação ao período de 2007 a 2014, em compensação o número de contratos aumentou 72% no mesmo período, mesmo comparando sete anos com apenas quatro. A Baker e a Schlumberger, outras duas gigantes do mercado internacional, também realizaram movimento semelhante, tendo redução nos valores médios de contrato de 66% e 45%, respectivamente. Ambas aumentaram o número de contratos em 15% no período de 2014 a 2019 em relação ao período de 2007 a 2014. Dessa forma, essas empresas restabeleceram o controle do fornecimento tecnológico no país”, pontua Colombini.

Essa movimentação também afetou diretamente as maiores construtoras brasileiras – Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia, UTC Engenharia e Constran – envolvidas na Operação Lava Jato. Entre 2015 e 2018, a receita líquida das líderes do setor registrou uma queda de 85%, de R$ 71 bilhões para R$ 10,6 bilhões.

Fonte: Sindipetro Unificado - SP

Edição: Mariana Pitasse