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Crônica | Freud da Silva

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cachorro, vira-lata caramelo
"Aparentemente ele não tinha nada de especial. Esteticamente nenhuma madame apaixonaria por ele à primeira vista" - Créditos da foto: Reprodução
“Parecia cachorro ensinado. Coloquei nele o nome de Freud da Silva."

Na minha casa tinha um cachorro que só faltava falar. Era um vira lata puro sangue. Encontrei-o na rua, com um olhar perdido, pra lá de Marraquexe.  Aparentemente ele não tinha nada de especial. Esteticamente nenhuma madame apaixonaria por ele à primeira vista.

Estava na Pampulha fazendo uma caminhada descontraída pra caramba. E estava animado, pois seria um fim de semana agitado. Teria Atlético e Cruzeiro, show dos Racionais, Paralamas, Fundo de Quintal e Comida de Boteco. Um fim de semana daqueles que os deuses mulatos de Berlim adorariam.

Poxa, não tenho condições de ter um cachorro. Além de tudo, eu não comprei, não pedi e não ganhei

Parei o carro longe da pista de cooper. E fui caminhando tranquilo. Sem pressa alguma, deixando rolar naturalmente. Aliás, pressa não me interessa. O melhor a fazer é caminhar contemplando a paisagem da lagoa da Pampulha e cantarolando um belo samba de Arlindo Cruz. Foi uma hora e meia de pura serotonina.

De volta ao carro pra ir embora, abri rapidamente a porta e, pra minha surpresa, um cachorro pulou pra dentro. Nunca tinha vista aquele cachorro antes. Como assim? Como um velho amigo, o cachorro foi entrando, sentando e pedindo: “vamos embora pra casa”.

Na hora tive a reação de colocá-lo pra fora. Mas, quem disse que o cachorro queria sair? Começou a rosnar e a balançar o rabo ao mesmo tempo. O que fazer? Então resolvi ir embora. E no meio do caminho colocaria o cachorro pra fora do carro, pensei comigo. Mas, não tive coragem!  O cachorro ficou e foi até a minha casa.

Coloquei-o pra dentro de casa, precisamente no meu quarto. E o cachorro estava com um mau cheiro daqueles!

Poxa, não tenho condições de ter um cachorro. Além de tudo, eu não comprei, não pedi e não ganhei. O cachorro simplesmente apareceu do nada. Seria um carma? Eu teria que cuidar desse cachorro? Tudo bem, hoje ele dorme aqui, mas amanhã eu arrumo um lugar pra ele.

Anoiteceu. Arrumei um lugar no quintal. Coloquei água, comida e uma camisa velha do Nirvana. O cachorro ficou todo feliz! Parecia que realmente era meu há muito tempo. Que cachorro folgado do Krai. Fui aos Shows do Comida de Boteco. Showzaços! Voltei cansado e tinha até esquecido do cachorro. Estava esgotado e muito feliz aquele dia. Cheguei em casa e fui dormir.

Até parecia cachorro ensinado. Coloquei nele o nome de Freud da Silva. O bicho era inteligente pra caramba e, merecia tal nome

Depois de algum tempo o cachorro começa a chorar no quintal. Então coloquei-o pra dentro de casa, precisamente no meu quarto. E o cachorro estava com um mau cheiro daqueles! Pelo menos não estava mais chorando. E eu voltei a dormir. E no dia seguinte levaria esse cachorro embora e bem pra longe.

Passaram-se muitos dias. O cachorro tornou-se meu grande amigo. Ele era inteligente, perspicaz, só faltava falar. Confesso que ele me ganhou. Acabou ficando lá em casa. Fazia coisas incríveis. Até parecia cachorro ensinado. Coloquei nele o nome de Freud da Silva. O bicho era inteligente pra caramba e, merecia tal nome.

Um dia, assessores do deputado 171 do bairro passaram na minha casa fazendo o cadastro dos moradores. Eu honestamente dei os dados na boa. Na época morava eu e minha vó. Esse deputado é um típico picareta e, embora do bairro, nem sabia quem era minha vó.  Mas ligava na data do aniversário dela. E a minha vó achava o máximo.

Eu ficava muito revoltado com aquela situação. E até arrependido de ter passado os dados pessoais para os assessores cadastrarem. Na época, acreditei que seriam usados para algum projeto relevante no bairro. Não era. Era apenas a velha forma de fazer política, usando a boa-fé das pessoas.

E como mostrar pra minha vó que esse deputado não é essa pessoa bacana que ela pensa? Que ele é um político desonesto que trabalha contra a maioria da população do bairro? Então, num determinado dia, a assessoria do tal deputado passou atualizando os cadastros. Esta seria a chance de mostrar pra minha vó que esse deputado 171 não vale uma pataca.

Nesse novo cadastro tirei o nome da minha vó e coloquei o nome do meu cachorro. O Freud da Silva.

Passou quase um ano quando eles voltaram a ligar pra minha casa. E quem sempre atendia o telefone era minha vó.

– Alô, bom dia! – Bom dia! – Queria falar com o seu Freud da Silva, por favor.

– Freud da Silva? Tem ninguém aqui como esse nome não. O que o senhor deseja?

– Aqui é do gabinete do deputado 171.

– Sei.

– Queríamos parabenizar o senhor Freud da Silva pelo seu aniversário.

– Aniversário?

– Sim, desejamos tudo de bom para o senhor Freud da Silva.

– Uai, esse é o cachorro do meu neto.

O assessor, do outro lado da linha, ficou mudo. Ele sacou que tinha caído numa armadilha. Nesse momento eu peguei o telefone e agradeci pelo aniversário do meu cachorro. Fiquei triste pela minha vó. Ela achava que o deputado 171 só ligava pra ela no dia do seu aniversário. Que era uma ligação especial. Que ele realmente lembrava da data. Ficou decepcionada. Logo entendeu que era um golpe e que eles ligavam pra todo mundo. Não importava se era gente, cachorro, papagaio. Nesse dia caiu a ficha pra ela.

Ainda me lembro desse caso com tristeza pela minha avó. E também fico triste pela maioria do povo brasileiro. Para os políticos, como o deputado 171 do meu bairro, não passamos de um número e de dados cadastrais. Eles nem sabem que existimos como pessoas de carne e osso.  Infelizmente, estamos cheios de deputados 171 por aí. Aliás, um até virou presidente do país. Acontece que ele não engana só a minha avó. Esse, mata, rouba, prega o ódio, não gosta de professores, de vacina e queima livros.

Rubinho Giaquinto é covereador pela ColetivA em Belo Horizonte.

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Edição: Rafaella Dotta