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Crônica | Um Enem desolador

Ver o ministro culpar a pandemia é de uma hipocrisia violenta.

Brasil de Fato | Crato (CE) |
O Enem que já costuma ser uma prova de resistência física e intelectual foi esse ano uma prova ainda maior de resistência psicológica. - Foto: Governo do Espirito Santo

Em 2009 eu prestei o Enem, na época o Exame estava ainda iniciando sua trajetória como porta de entrada para o ensino superior, antes disso ele era apenas um índice da qualidade do ensino médio brasileiro. Além do Enem tive que fazer o vestibular de todas as universidade da minha região para ver se conseguia entrar em pelo menos uma - foram quatro no total. Hoje, com o Enem, de casa mesmo a pessoa escolhe os cursos e as instituições onde pretende estudar. Vale dizer que minha cidade tem o privilégio de ter várias instituições públicas, o que não é o caso da maior parte dos municípios do país.

Deve ter sido a quarta ou quinta vez que trabalhei na aplicação da prova. Mas foi desolador contribuir com o Enem 2020. Não só por ter de ser adiado devido a pandemia, mas por um conjunto de medidas e ações governamentais, que fizeram com que a ausência, que já costumava ser alta, fosse estratosférica. Não fizeram a prova 51,5% - isso quer dizer gente, dois milhões oitocentos e quarenta e duas mil trezentas e trinta e duas pessoas (2.842.332). São pessoas que tiveram seus sonhos adiados ou mesmo ceifados antes de nascerem. 

Ver o ministro culpar a pandemia é de uma hipocrisia violenta, pois quando o governo, contra a própria vontade e pela força do movimento estudantil, foi obrigado a fazer uma enquete sobre o adiamento da prova, a juventude foi lá e disse que o Exame deveria ser em maio, mas o governo escroto como de costume colocou a prova em janeiro. Mesmo com o indicativo da segunda onda da covid, mesmo com uma nova mutação do vírus, mesmo com estados no limite da infecção, mesmo sem vacinação iniciada e mesmo com uma infinidade de estudantes que foram severamente afetados em suas condições de estudo. Tem cidades pequenas que nem internet tem, para dar um único exemplo. Não vamos nem entrar noutras questões de acesso à educação, pois se não essa crônica desabafo vira um romance histórico em vários tomos.

Ver esse mesmo ministro culpar a mídia como a segunda responsável pelo alto número de faltantes é no mínimo uma grande ironia. Primeiro porquê os grandes meios de comunicação deram pouca visibilidade ao movimento nacional pelo #adiaenem e segundo porque tiveram muitas cidades que dependeram das rádios e TVs públicas para ter algum acesso ao estudo. Não vamos nem falar nos cortes em ciência e educação, mesmo elas tendo dado provas de sua essencialidade para o desenvolvimento do país nesse último período. CNPq, Capes e Universidades públicas respirando por aparelhos, mas a meta do governo é fazer o que estão fazendo com o povo amazonense - asfixiar. Fazer com o Brasil o que fizeram com o Amapá, deixar no escuro a nação.

Foi de partir o coração aplicar o Enem 2020. Jovens cabisbaixos se arrastando até suas salas, ansiosos para iniciar e mais ansiosos ainda por partir, tristes… O Enem que já costuma ser uma prova de resistência física e intelectual foi esse ano uma prova ainda maior de resistência psicológica. Posso estar enganado e espero de verdade que sim, mas acho que os resultados serão ainda mais perturbadores que o número de faltosos. A julgar pelo que vivi nesse primeiro dia.

Edição: Monyse Ravena