Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Qualquer um pode ser presidente?

"Bolsonaro age no cargo de Presidente como qualquer de seus eleitores agiria, na vida privada"

Santa Maria | BdFRS |
"Bolsonaro é a prova de que nem todos podem ser grandes ou ocupar grandes cargos, e que ser pequeno demais para um cargo de grande responsabilidade como a Presidência da República, pode representar a ruína de um povo" - Agência Brasil

Sabe, tem um filminho muito gracioso que faz uma volta absurda para falar uma coisa bem simples, mas que nunca deveríamos esquecer: grandes homens e grandes mulheres podem vir de qualquer lugar da sociedade, mas isto não significa que qualquer um esteja talhado ou tenha estatura para ser grande.

Sim, eu sei que isto contraria os livros de autoajuda e o mindset apregoado pelos coachings de plantão, ou mesmo o democratismo mais vulgar, mas é só o óbvio, e existe larga comprovação empírica na história.

Ah, o nome do filme? Ratatouille, uma obra prima da animação.

Trata-se da estória de Remy, um rato - sim, e no sentido denotativo, um roedor mesmo - com habilidades incomuns de chefe de cozinha, que emerge dos esgotos para o estrelato na gastronômica Paris. Sua inspiração era o famoso Chef Gusteau, cujo lema era "qualquer um pode cozinhar". Obviamente, muitos à época esboçavam desdém pelo lema do Chef Gousteau, porque viam a alta gastronomia como uma arte de elite, inclusive Anton Ego, um grande e egocêntrico crítico gastronômico francês.

Porém, após ele conhecer de forma surpreendente a origem do Chef (ratinho) Remy, que havia lhe servido a mais impressionante experiência gustativa dos últimos tempos, ele escreveu em sua crítica de jornal no dia seguinte que finalmente havia compreendido o lema de Gousteau: "Nem todos podem se tornar grandes artistas, mas um grande artista pode vir de qualquer lugar. É difícil imaginar origem mais humilde do que a deste gênio que agora cozinha no Gousteau, que é, na opinião deste crítico, nada menos do que o melhor chef da França".

Bem... me desculpem aqueles que acharam que eu ia falar da sétima arte, mas é que eu acho esta uma parábola perfeita para entender parte da tragédia que estamos vivendo no Brasil.

Tem muita gente que apoia o Bolsonaro simplesmente porque se identifica com ele. Não digo que se identifique com o seu ideário fascista, ou com o que ele faz e diz, mas sim com o seu "tipo". Acho que esta é uma psicologia eleitoral um tanto nova, das pessoas gostarem de ver no poder alguém que seja do seu "tamanho". Não que ele seja igual a elas, mas é do tamanho delas, do tipo delas.

Bolsonaro é como o tio do churrasco que se jacta de saber um jeito melhor de fazer o fogo, o boleiro de fim de semana que conta piadas escrotas numa roda de cerveja ao final do jogo, ou o parceiro de pescaria que empurra o amigo na água só por farra... Ou seja, é gente como tantos.

Isto faz com que cada um se projete como alguém que também poderia estar lá no Planalto, reduzindo a distância imagética que sempre houve entre quem governa e quem é governado, e sobretudo entre a elite política e o povo. Decerto as pessoas precisam disso, se imaginarem do tamanho dos poderosos, para se sentirem menos reféns do sistema e dos próprios políticos.

E acho que sim, este imaginário novo se intensificou com o fenômeno das redes sociais que, afinal, deram voz e direito à fala para qualquer pessoa que tivesse o mínimo de condições para angariar engajamento.

Sigam-me...

Antes das redes sociais, as pessoas não sonhavam em ter alguém do tamanho delas, ou feito elas, na Presidência. Porque para chegar lá, era preciso passar por uma série de filtros que para elas eram inatingíveis, e que conferiam o tal direito à fala, e consequentemente, autoridade para se candidatar de forma viável.

Boa parte destes filtros eram controlados pelas mídias tradicionais, que literalmente filtravam quem passava por ali. Para ter direito à fala você tinha que ter algum feito relevante ou ocupar algum espaço de poder, como político, intelectual, artista, sindicalista, líder comunitário, ativista, funcionário público, etc. Por isso a mídia tradicional era vista como um lugar inacessível ao cidadão comum.

Assim, os discursos que ali imperavam e as personalidades que por ali passavam é que moldavam o imaginário coletivo acerca de quem estaria em condições de alcançar os mais altos cargos da República.

Ali se produzia o fetiche da autoridade.

Mas as redes sociais furaram esta bolha, e mostraram ao cidadão comum que por trás da tela fria da televisão e das letras mortas do jornal e da revista há uma realidade igual à sua. E que se pode produzir o mesmo tipo de celebridade que ali eram projetadas, a partir do nada.

Assim, quebrou-se o fetiche.

A difusão de acesso às redes sociais, se por um lado é vista como a democratização do direito à fala, de outro também trouxe uma consequente vulgarização de toda e qualquer forma de autoridade, e até mesmo um desejo de desbancar as autoridades constituídas até então, para tomar o lugar delas.

E então, junto com o fetiche da autoridade perdeu-se também a capacidade de desvelar a substância por trás da aparência, e de distinguir quem tem e quem não tem tamanho e conteúdo para governar.

Mal comparando, com o advento das redes sociais, a influência social de um youtuber famoso pode rivalizar com a de um Habermas, sem qualquer chance de o segundo recorrer às suas credenciais e seus feitos intelectuais para sustentar a sua posição. Aliás, Habermas mesmo já falou que o ofício do filósofo será inútil se não houver leitores, meio que prenunciando o ocaso dos intelectuais nesta nova era.

Com isso, houve um emparelhamento de possibilidades que dissolveu qualquer tipo de substância necessária para se influenciar ou chegar aos mais altos cargos de poder, como a Presidência. E daí, por óbvio, muitas pessoas comuns, que dispunham de soluções milagrosas e caseiras para as mazelas do Brasil, passaram a achar razoável e desejável ter alguém como elas também na Presidência da República.

E então apoiaram Bolsonaro.

Mas, o que a pandemia revelou foi exatamente a negação disso. Ela reafirmou que a Presidência, assim como todos os demais cargos políticos da República, não são para qualquer um, não são para as pessoas comuns. E Bolsonaro é a prova cabal disso.

Sua incapacidade oceânica de perceber e gerenciar a crise sanitária que estamos vivendo, é a forma mais didática que temos para mostrar às pessoas que o cargo de Presidente não é para pessoas como elas, como nós. É para pessoas com tamanho e substância para serem estadistas.

Existe uma complexidade tão grande na coisa pública, que envolve os interesses, ideias e valores compartilhados e rivais de tantos segmentos diferentes da sociedade, somado aos inúmeros mecanismos e estruturas de funcionamento do Estado, da economia, da sociedade, das relações internacionais, mais as contingências e crises que acometem o país sem aviso prévio, que não há como qualquer pessoa dar conta sem ter qualidades e experiências muito diferenciadas e superiores.

E este é o problema, Bolsonaro age no cargo de Presidente como qualquer de seus eleitores agiria, na vida privada: não acreditou nos prognósticos técnicos como se estivesse contrariado; negou a ciência como se fora um supersticioso; reclamou das restrições sanitárias como o dono de um bar faria; não reconheceu o trabalho das linhas de frentes como um ignorante; não planejou nada, como um procrastinador desorganizado; reclamou e ameaçou os outros poderes como um tiranete ranzinza; mentiu como um trapaceiro; jogou a culpa nos outros como um covarde; e deixou pessoas morrerem como um criminoso.

E ele fala sobre tudo isso como se estivesse à beira do gramado palpitando sobre o seu time e tirando onda com o adversário.

Não falei aqui dos pendores fascistas e totalitários do Bolsonaro, porque para mim o seu traço mais trágico é a profunda incompetência e incapacidade para o cargo. Acho mesmo que ele deva ser assim para qualquer trabalho honesto que fizesse, porque foi assim nos 28 anos como deputado e mesmo na carreira militar anterior. Eu já dizia antes da eleição e repito agora, ele não tem competência nem para ser um ditador, porque a história mostra que a maioria dos grandes ditadores tinham, ao menos, mentes brilhantes.

E não é uma questão ideológica como muitos pensam, pois em meados de 2020, Trump, que é da mesma cepa de Bolsonaro, já tinha encomendado 200 milhões de doses da vacina da Pfizer. O governo Bolsonaro recebeu um email da mesma empresa há meio ano e deixou esquecido numa gaveta. Agora mendiga para a Índia, sem sucesso, um centésimo daquilo que o seu ídolo já tinha encomendado há meio ano.

A questão é esta, estamos com a vida nas mãos de incompetentes e incapazes, que mesmo que não fossem mal intencionados, não saberiam o que fazer.

E por que comecei este texto com a história do ratinho chefe de cozinha? Para mostrar que esta não é uma visão elitista da política.

O século XXI nos deu a confirmação trágica das duas afirmações extraídas pelo crítico Anton Ego da máxima do Chefe Gousteau, do filme Ratatouille.

Bolsonaro é a prova de que nem todos podem ser grandes ou ocupar grandes cargos, e que ser pequeno demais para um cargo de grande responsabilidade como a Presidência da República, pode representar a ruína de um povo.

Lula, ao contrário, é a prova viva de que grandes estadistas podem vir de qualquer lugar. E assim como o ratinho de Ratatouille, é difícil imaginar origem mais humilde do que a deste retirante nordestino que se tornou operário, sindicalista, parlamentar constituinte e um dos melhores presidentes que o Brasil já teve.

Nem todos podem ser presidentes, mas um grande Presidente pode vir de qualquer lugar.

* Renato Souza, professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). 

 


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Edição: Katia Marko