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Chá na antessala da ditadura

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Manaus deu o alerta real: não chegaremos vivos a 2022. O ar já está sendo cortado. As vacinas acabam em 3, 2, 1... - Créditos da foto: Michael Dantas/AFP
Manaus deu o alerta real: não chegaremos vivos a 2022

O presidente Jair Bolsonaro não representa o pior destino para o país, por mais incrível que isso possa parecer. O ditador Jair Bolsonaro será ainda pior. O grave, no entanto, é que o segundo habita o esgoto da alma do primeiro. E anda, despudoradamente, colocando as manguinhas de fora.

Nos últimos dias, os sinais dessa evidência vêm se sobrepondo. Há um projeto que fica cada vez mais claro. Começa com o incentivo ao armamento da população, com facilitação de registros e aquisição de artefatos e munições, sempre utilizando a incabível ideia de liberdade como caução para justificar a posse e o porte de armas. Povo livre é povo armado, vomita a novilíngua do poder.

A escalada segue com propostas de criação de uma linha de comando das polícias estaduais que chegue ao topo no governo federal, politizando as forças de segurança e enfraquecendo os laços com a sociedade e com a segurança pública. A violência deixa de ser um desvio do uso da força para ser a estratégia de expressão do poder político. Pragmaticamente, Bolsonaro retoma seu sonho de implantar o excludente de ilicitude. Polícia e milícia se distinguem por uma sílaba – e essa é sua maior distância.

Na saúde a incompetência foi além da má gestão, patrocinando mortes evitáveis

Há, no entanto, uma mudança de atitude que faz com que esse propósito de estado policial-militar ganhe hoje forma tão explícita. Até alguns meses passados, havia uma crença ilusória na transposição automática do lawfare curitibano no âmbito do Estado brasileiro. O ministro da Justiça trazia para o governo um misto de prestígio que a extrema direita sempre desejou com expertise para torcer por dentro da máquina judiciária.

O ex-juiz e atual lobista e parecerista de criminosos internacionais carreava um séquito de admiradores, puxados pela campanha conduzida pela imprensa e carimbada pela corporação de procuradores e juízes. Quando Moro se tornou imprestável ao governo, sobretudo pela sombra emanada por sua vaidade e ambição, foi dada a senha para ir direto à fonte da exceção e descartar o marreco.

O novo ministro da Justiça que assumiu em seu lugar contribui para levar adiante a preparação do terreno golpista, com sua atuação de advogado de defesa de crimes que tangenciam o governo, seus mandatários e familiares, numa ação menor e paroquial. O que um dia foi chamado de porta de cadeia hoje responde pelo apodo de causídico de porta do Planalto. As cortes, para completar, trocaram a defesa anônima da lei pela ânsia de protagonismo.

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Servilismo e dissimulação

Parte do Ministério Público e sobretudo a PGR abusa do servilismo e dissimulação aos estragos contra a lei perpetrados pelo presidente e seu entorno. Quando todos os limites pareciam ter sido ultrapassados, passam agora a atuar no campo da chantagem institucional, ameaçando com uma carta na manga: o estado de defesa como sucedâneo para os críticos da calamidade instalada pela inépcia do governo no controle da pandemia.

Bolsonaro sabe ainda que, para mudar de um mero péssimo presidente para ditador plenipotenciário precisa, nessa levada estratégica, de garantir o apoio militar. Não foi outra sua inspiração ao encher a máquina pública, em todos os escalões, com militares da ativa e da reserva, em cargos para os quais eles não estão preparados.

Em alguns casos, como na saúde, a incompetência foi além da má gestão para chegar ao patrocínio de mortes evitáveis, decorrentes de mentiras, obediência cega ao charlatanismo, incapacidade de comando, desconhecimento das estruturas sanitárias, extermínio de políticas eficientes e gestão ideológica de ações técnicas e científicas.

O empenho pelo golpe também está presente na condução da política externa, com o enfraquecimento da participação em instituições multilaterais e no isolamento comercial e diplomático. O apoio a Trump, que já era tóxico aos interesses do país durante o governo do ex-presidente americano, se tornou ainda mais deletério ao apoiar a insensatez antidemocrática encenada no Capitólio, condenada por todo o mundo. Bolsonaro foi um dos últimos a aceitar o resultado eleitoral nos EUA e o primeiro a se entrincheirar ao lado da tentativa de golpe. Vanguarda do atraso.

A atuação de assumido pária, em nome do delírio do ministro Ernesto Araújo, jogou o país num novo cenário que só existe na mente e nos sonhos autoritários dos cultores de uma ultradireita xenófoba e reacionária. O anticomunismo ganhou ares de reação antimoderna e teocrática. Além de prejudicar os negócios, a política externa deixou o Brasil sem vacinas e com as piores perspectivas entre as grandes nações no combate à pandemia.

Fora Bolsonaro!

A percepção de que a política da morte conduz o país está, com muito atraso - mas nem por isso de forma desprezível -, levando a consideração do “Fora, Bolsonaro” como a mais urgente bandeira política do país. É preciso ter em mente o encadeamento das ações que vão compondo o golpe como a antessala da ditadura que nos espera na esquina, enquanto o chá é servido e o tilintar da louça esconde o ruído das armas, do ódio e da mentira.

Em breve teremos um Estado militar de fato, com pessoas inconsequentes armadas real e simbolicamente para destruir a democracia, com aparato de violência estruturado em linha de comando miliciano, com instituições judiciais cooptadas e alinhamento com outros estados autoritários. Bolsonaro será o ditador, função para a qual vem se preparando há mais de 30 anos, em meio a riso de escárnio e descrença.

Não podemos dizer que não fomos avisados. As pessoas estão morrendo sem ar. O país não tem vacina e nem plano para enfrentar a pandemia que se aprofunda sem expectativa de contenção. As instituições não seguram o arbítrio do governo federal além do nível pedestre dos intentos mais loucos do presidente e de seu grupo, como se fossem ações improvisadas e sem consequência.

Para muitos o “Fora Bolsonaro!” é uma aventura inconsequente e sem pragmatismo. Não haveria nada a fazer além de esperar a próxima eleição com paciência histórica, enquanto debatemos alianças com inimigos e negociamos cargos para as mesas diretoras do Congresso e construímos uma candidatura viável, ou seja, aquém da esquerda que merece a história de lutas que a define. Dois anos sem respirar. Manaus deu o alerta real: não chegaremos vivos a 2022. O ar já está sendo cortado. As vacinas acabam em 3, 2, 1...

Edição: Elis Almeida