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Boiadas, mentiras e cortinas de fumaça

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O Brasil chegou no doloroso marco de 250 mil vidas perdidas para o Covid-19 - Foto: Divulgação/Rio da Paz
Ao chegar à marca de 250 mil mortos, o país registra seu pior momento em toda a pandemia

O maior problema do Brasil é a pandemia de covid-19. Tudo o mais é menor ou decorrente, como a economia ou a educação. Ao chegar à marca de 250 mil mortos e mais de 10 milhões de contaminados pelo novo coronavírus, em apenas um ano, o país ainda registra seu pior momento em toda a pandemia. Em menos de dois meses de 2021, o estado do Amazonas e algumas cidades de São Paulo, registraram mais mortes pela doença do que em todo o ano de 2020. A média móvel de mortes no país completa mais de um mês na casa do milhar. Com a curva voltada para cima.

A vacinação se arrasta, mal chegou a 3% da população no caso da primeira dose e, em termos de imunização completa, com as duas aplicações recomendadas, não chega a 1%. As novas remessas de vacinas que fazem parte do esquema adotado pelo país são anunciadas em escala tímida e incapaz de mudar o ritmo lento. As aquisições de outros imunizantes que permitiriam ampliar a oferta claudicam na burocracia, na ideologia e na mais estúpida guerra entre governo e laboratórios estrangeiros. Há uma nítida campanha antivacina em andamento.

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Com isso, nem mesmo a histórica eficiência e estrutura instalada do SUS em termos de imunização, que permite projetar até 2 milhões de aplicações de vacinas por dia útil – a maior marca do mundo – pode ser ativada. Além de não se programar para compra e distribuição de imunizantes, o governo ainda registra a diminuição de gastos no sistema público de saúde no período da maior crise sanitária de nossa história.

Não foi apenas na imunização que o governo federal falhou em suas responsabilidades com a saúde pública. Não conduziu campanhas de esclarecimento, exibiu por meio de autoridades, a começar pelo presidente, comportamentos irresponsáveis e apostou em medicamentos fajutos. Não investiu na criação de novos leitos hospitalares e no fortalecimento da atenção básica. Não contribuiu para a formação de pessoal especializado para dar conta da manutenção do atendimento depois de meses de sobrecarga. Deixou faltar oxigênio, sedativos e testes. Não comandou um esforço de vigilância de casos.

Bolsonaro não conduziu campanhas de esclarecimento, não investiu na criação de novos leitos hospitalares e na formação de pessoal e deixou faltar oxigênio

Com um laboratório mundial de dezenas de países antecipando as fases que inevitavelmente chegariam até nós, o país viu novas ondas, variantes e cepas surgirem enquanto defendia o discurso da flexibilização e da prioridade da economia sobre a saúde. O Brasil não registrou nenhum lockdown, fechamento, isolamento social ou mesmo quarentena propriamente dita, com raras exceções de alguns municípios, como Araraquara e, assim mesmo, em período que se conta por horas, não por dias ou semanas como no Vietnã, China ou Nova Zelândia.

O toque de recolher, quando decretado, atinge apenas períodos da madrugada, com pouca eficácia real. Recolhe-se o que já está recolhido. Uma espécie de marketing ressentido da inação.

Há um constrangimento – ou covardia –  em desafiar pressões de atividades que se traduzem em aglomeração de pessoas, sobretudo do comércio. O movimento em favor da reabertura das escolas coloca no mesmo pacote valores importantes, mas momentaneamente críticos e antípodas. Nada mais importante que garantir ambiente criativo, saudável e seguro para as atividades escolares.

No entanto, não se pode tomar esse valor como absoluto no caso de risco de vida para as crianças e professores. O conflito ético, entre duas verdades, indica a urgência da política e a política da urgência.  

As ações em países da Europa e nos EUA têm mostrado um cuidadoso recuo do primeiro movimento de manutenção das aulas. O Brasil corre o risco de errar duas vezes ao recusar a experiência prévia de outros países. Errou ao não levar a sério o lockdown quando era necessário, arrisca errar novamente ao seguir exemplos de abertura de escolas no período mais crítico da pandemia. O que a antecipação poderia servir de alerta, acaba sendo desvirtuada pelo uso circunstancial de atitudes extemporâneas. Ou seja, uma seletividade interessada e não conduzida pelos fatos.

Trazer a pandemia, o quarto de milhão de vidas perdidas, a incompetência e irresponsabilidade do governo federal e a falta de vacinas para o primeiro plano das nossas urgências é fundamental. Batemos no fundo do poço: qualquer outra atitude além de recuperar a razão, nesse momento traduzida num esforço nacional em defesa da vida dos brasileiros, não se justifica. Alcançamos um ponto em que a palavra prioridade não admite plural. A hora inadiável é a de salvar vidas.

O próprio governo federal tem se esmerado em desviar a atenção da pandemia lançando mão de várias artimanhas e canalhices

Muitos podem argumentar que o país não parou, que existem outras ações importantes que precisam ser tomadas, que a vida não se reduz à sobrevivência. O próprio governo federal tem se esmerado em desviar a atenção da pandemia – como se isso fosse possível – lançando mão de várias artimanhas e canalhices, muitas delas repercutidas pela imprensa corporativa. Há, pelo menos, três dessas estratégias diversionistas em cartaz. O passamento da boiada, a cortina de fumaça e a mentira descarada.

No primeiro caso, seguindo o conselho do ministro contra o meio ambiente, Ricardo Salles, o governo lança mão da crise na saúde para justificar ações, como não cumprir os gastos obrigatórios com saúde e educação. A regra é transformar em entrave o que é uma garantia de direitos e de investimentos sociais. Mais que assumir a lógica da exceção, a saída apela para mudanças estruturais nos gastos e no orçamento, emendando a Constituição com seu jabuti.

Com a defesa de que manter o orçamento em dia é mais importante que manter a vida em dia, dá-lhe achaque, colocando na conta do SUS e do Fundeb a saída para sustentar o auxílio emergencial para a parte da população, mesmo com expurgos no valor e no conjunto de pessoas a ser atendido. Passada a boiada, o fim da obrigatoriedade dos gastos mínimos nas mais importantes políticas públicas passa junto. Não é um acaso que a medida legal que sedimenta esse crime tenha conquistado título de PEC da Chantagem.

Outras boiadas que ganham o pasto se voltam para a desregulamentação das normas ambientais, para a sempre incensada autonomia do Banco Central, e, sobretudo, para a retomada do programa de privatizações.

Num afago a Paulo Guedes, para manter o mínimo de apoio junto ao setor econômico financeiro e ao mercado, assustados com a movimentação em torno da Petrobras, o governo leva ao Congresso a proposta de privatização da Eletrobras e acena com outras empresas públicas estratégicas.

O gado das armas também atravessa o mata-burro do novo regramento, com decreto presidencial feito para armar a população. Com um pé na transferência da política de segurança para o coldre do cidadão e outro no reforço miliciano. E até mesmo na resistência aos avanços democráticos, já que até eleição da oposição pode ser considerado democrático demais para o bolsonarismo. Se o decreto prosperar, bom para o governo, se não for, mas causar celeuma, é bom também.

No campo da cortina de fumaça, há um pouco de tudo. O piti do deputado Daniel de Tal (é bom começar a esquecer o nome do parlamentar boçal) e sua possível cassação; o retrocesso do STJ no caso da rachadinha (nome afetivo para furto, organização criminosa e lavagem de dinheiro) de Flávio Bolsonaro; a troca de ministros na órbita do Planalto, mudando seis por meia dúzia. O fumacê segue com anúncio de processos contra críticos do governo nas redes sociais; o eterno bate-boca com a imprensa; e até mesmo a onda em torno do salário e das gratificações do presidente recém-frito da Petrobras.

Não há nada mais importante que combater a pandemia da covid-19. Não teremos segunda chance. A vida só dá uma safra

Mas é sobretudo no capítulo das mentiras que o governo concentra seu negacionismo em face à pandemia. Para abdicar de sua responsabilidade em comandar a ação sanitária, lança mão do jogo de empurra, culpando o STF por barrar suas ações – o que é mentira – e jogando na mão de estados e municípios grande parte de suas atribuições. Além disso, mente ao aparelhar instituições como a Anvisa, que só preserva sua atuação em razão do compromisso de seus servidores.

O Ministério da Saúde, nas mãos de militares especialistas em logística capazes de confundir Amazonas com Amapá, tem sido um poço de falsidades, desde protocolos publicados e depois desmentidos, até o desmantelamento de sua estrutura gerencial, corrompida pela entrega de secretarias estratégicas a pessoal sem capacitação técnica e afeito mais à continência que a competência. A mentira chegou à apresentação de um cronograma de vacinação acertado com estados e municípios, que começou a ser descumprido no minuto seguinte.

Não há nada mais importante que combater a pandemia da covid-19. Nem a Petrobras, nem a volta às aulas, nem a abertura das lojas e bilheterias de festas. Nem os favores ao Centrão, nem a reeleição do presidente, nem mesmo o Fora, Bolsonaro ou uma candidatura de consenso à esquerda. Agora é o momento de salvar vidas. Toda energia política precisa ser canalizada para esse desafio. Não teremos segunda chance. A vida só dá uma safra.

Edição: Elis Almeida