Apesar de sofrer historicamente com a falta de infraestrutura, de instalações adequadas e de cuidados mais humanizados, a população carcerária de Minas Gerais ocupa a quinta posição no país no ranking das que mais possuem detentos exercendo atividades de trabalho. Em todas as 192 unidades prisionais administradas pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), por meio do Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG), existem 12.231 presos e presas que trabalham em diversas atividades laborais.
De acordo com artigo 28 da Lei de Execução Penal, de 1984, o trabalho das pessoas privadas de liberdade é considerado um “dever social e condição de dignidade humana”, além de ter como finalidade os propósitos educativo e produtivo. Ou seja, além do trabalho ser um direito humano social, previsto na Constituição Federal, é também considerado dever da pessoa presa.
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“O trabalho é uma via de mão dupla, um benefício para o apenado, pois ao mesmo tempo em que proporciona o caráter pedagógico de aprendizado de uma profissão, de um ofício, propicia a redução do tempo de cumprimento da pena”, explica a advogada Valdênia Geralda de Carvalho, que é integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) e conselheira do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Conedh) de Minas Gerais. A Lei de Execução Penal institui a remição da pena, assegurando redução de um dia a cada três dias trabalhados.
No entanto, para a advogada criminalista Amanda Rodrigues Alves, é necessário questionar a ideia de que o trabalho do preso é um dever, uma vez que a Constituição Federal também veda o trabalho forçado. Segundo ela, que também é professora de processo penal e mestra em Direito Ambiental, com foco em meio ambiente carcerário, para alguns pesquisadores e aplicadores do direito, o trabalho seria obrigatório somente a partir do regime aberto ou em caso de livramento condicional. Nos casos em que os detentos cumprem regime fechado ou semiaberto, o trabalho deveria ser considerado somente um direito dos presos.
O trabalho é uma via de mão dupla, um benefício para o apenado e proporciona a ressocialização
Apesar das interpretações da lei, o fato, segundo Amanda é que de uma forma geral, os presos avaliam positivamente o trabalho e fazem questão de trabalhar, diferentemente do que pensa o senso comum.
“Para aqueles que estão no regime fechado, o que resta à grande maioria deles é o artesanato e os próprios trabalhos com faxina e manutenção da unidade prisional. Infelizmente, o número de vagas [de trabalho extramuros] é muito inferior ao número de pessoas que querem trabalhar. E o preso quer trabalhar porque evita o ócio, ele não fica dentro da cela superlotada e insalubre, ocupa a cabeça, e também porque ganha remição”, analisa.
Como funciona
De acordo com informações da Sejusp, em todas as unidades prisionais do estado há atividades de limpeza e manutenção, e muitas empresas têm instaladas áreas de produção dentro dos presídios ou penitenciárias. Nessas áreas são fabricadas roupas, produtos artesanais em madeira, componentes industriais, bolsas, máscaras e móveis. São ao todo 119 atividades de trabalho e 503 entidades parceiras.
Apesar do ranking, Amanda avalia que a quantidade de empresas parceiras ainda é pequena comparada à demanda. A população carcerária do estado, segundo a Sejusp, é de 60 mil, embora alguns juristas afirmem que pode chegar a 72 mil pessoas privadas de liberdade. “Eu falo que falta boa vontade estatal e da própria sociedade civil para solucionar esse problema. As pessoas cobram muito que o preso precisa trabalhar, precisa pagar os custos. Mas ao preso não é dado esse direito”, critica.
Minas conta com 503 entidades parceiras na oferta de trabalho
As empresas que estabelecem parceria com o sistema prisional são reconhecidas com o Selo Resgata, iniciativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que reconhece a conduta de responsabilidade social das instituições que contratam pessoas privadas de liberdade e egressos do sistema prisional. Em 2018, Minas Gerais foi o estado com mais instituições certificadas, com 106 empresas selecionadas, o que representa 53% de todas as instituições certificadas no país.
No caso dos trabalhos extramuros, os detentos que estão em regime semiaberto – e cumprem critérios fixados pela justiça – exercem as atividades fora das unidades prisionais, por exemplo, na limpeza urbana, na manutenção de ruas e avenidas, e na construção civil. No entanto, essas atividades estão suspensas desde o ano passado por causa da pandemia, sem previsão de serem retomadas.
Detentos recebem, no mínimo, ¾ do salário mínimo vigente (R$ 825,00)
Em março do ano passado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais recomendou tribunais e magistrados que concedessem prisão domiciliar aos presos em regime aberto e semiaberto, para evitar a contaminação nas unidades pelo coronavírus. No entanto, a recomendação nº 62, do Conselho Nacional de Justiça, de março de 2020, estabelece uma série de requisitos para a liberação dos presos, o que fez muitos detentos que estavam no semiaberto retornarem para as unidades prisionais.
“O que a gente vê na prática, é que os direitos do preso relativos ao trabalho foram caçados. O preso estava trabalhando fora e agora foi regredido para o regime fechado. Ele perdeu o trabalho, perdeu as saídas temporárias e se encontra em um regime mais gravoso em razão de um fato que ele não tem responsabilidade. Essa é a realidade de hoje, infelizmente”, aponta Amanda.
Pagamento
Pelo trabalho, os detentos recebem no mínimo, por determinação contratual, ¾ do salário mínimo vigente, o que hoje corresponde a R$ 825,00. O pagamento é realizado dividido em três percentuais: 25% é destinado à uma conta pecúlio – um fundo que o preso só pode sacar quando ele vai para o regime aberto ou para o livramento condicional; 25% é direcionado para ressarcimento do Estado; e 50% é destinado à assistência familiar ou pessoal. Segundo a Lei de Execução Penal, os detentos não recebem pelas atividades executadas como prestação de serviço à comunidade.
Isso significa que o trabalho dos detentos não se submete às regras previstas na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o que faz com que eles não tenham direitos como férias, 13º salário, aposentadoria e fundo de garantia. O detento também não possui vínculo empregatício com o Estado e nem com a empresa contratante. Mas, para a advogada Valdênia, todos os condenados que exercem atividades laborais deveriam ter direito ao salário mínimo vigente no país, por se tratar de questão de dignidade e de tratamento igualitário, o que contribuiria para a ressocialização mais efetiva.
O Estado de Minas Gerais Minas Gerais arrecada anualmente R$ 4 milhões com o trabalho dos detentos
“Sem oportunidade de trabalho no ambiente prisional, a recuperação e a ressocialização do condenado serão totalmente inviabilizadas, esvaziadas, deveras prejudicadas. A ausência do trabalho torna inócua toda e qualquer possibilidade de ressocialização. A tônica é ressocializar para não reincidir”, ressalta a advogada. Ela também defende investimentos em políticas em Direitos Humanos e fiscalização do trabalho do preso, para evitar exploração da mão de obra e coibir condições indignas de trabalho.
De acordo com o Depen, a utilização da força de trabalho dos detentos e a parceria das empresas arrecada, anualmente, em Minas Gerais, cerca de R$ 4 milhões, recurso que é revertido aos cofres públicos.
Alguns projetos
O projeto Cultivando a Liberdade prevê a produção de hortaliças nas unidades prisionais e a criação de uma rede de distribuição para entidades filantrópicas, bancos de alimentos dos municípios, hospitais, creches e escolas. No estado, são mais de 50 hortas com aproximadamente 220 presos trabalhando diariamente.
Em Belo Horizonte, o Hospital da Baleia é uma das instituições beneficiadas com a produção de hortaliças cultivadas por internos da Penitenciária Nelson Hungria, localizada em Contagem, na Região Metropolitana.
Na Nelson Hungria, há também a produção de brinquedos pedagógicos e lúdicos, como parte do projeto Fábrica da Alegria, uma marcenaria instalada dentro da unidade que utiliza madeira apreendida ou doada. Na véspera do natal do ano passado, mais de 600 crianças do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, receberam brinquedos de madeira fabricados pelos detentos.
As internas da penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, que fica em São Joaquim de Bicas, inauguraram recentemente a marca Digna, para comercializar os artesanatos fabricados por elas. Os produtos estão disponíveis para venda online e podem ser acessados aqui.
Edição: Elis Almeida