ENTREVISTA

“Temos uma divisão de classe e raça na enfermagem”, diz especialista em saúde pública

Mulheres negras ocupam os postos mais precários e expostos à covid, afirma Alva Helena de Almeida, enfermeira aposentada

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Profissionais negras são mais da metade das profissionais da categoria - Foto: Rafael Rizzino/CoordCom UFRJ

As mulheres negras representam 53% dos profissionais de enfermagem, segundo pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Engermagem (Cofen) em 2017. Apesar de ter um peso relevante na categoria, elas estão concentradas em postos de nível médio, mais precarizados e com menor remuneração. Quase 60% das técnicas e auxiliares de enfermagem são negras.

Entre profissionais com graduação, o cenário é inverso. Cerca de 57% das enfermeiras são brancas. 

Na avaliação de Alva Helena de Almeida, enfermeira aposentada, mestre em Saúde Pública e doutora em Ciências, os dados explicitam uma herança racista na profissão.

Integrante da Articulação Nacional de Enfermagem Negra (Anem), ela explica que, no início do século passado, todo o trabalho de atenção à saúde e cuidado com crianças, adoecidos e idosos era realizado por mulheres negras, escravizadas e indígenas.

Mas, quando o primeiro curso de enfermagem foi criado, dando início a profissionalização, o acesso foi restrito a mulheres brancas, excluindo as demais profissionais, que posteriormente, da década de 30, voltaram a ocupar níveis médios. Um processo que fomentou ainda mais a feminilização e a exploração da força de trabalho na área da saúde.

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“Temos uma divisão hierárquica, de classe, de raça e de funções dentro da área da enfermagem. Temos uma retenção no nível médio dessas mulheres negras que têm muita dificuldade em acessar a graduação por inexistência de políticas que favorecem essa formação”, afirma Almeida. 

“Não é possível esperar que haja uma mobilidade apenas pelos sujeitos para uma igualdade racial na profissão. Essa desigualdade, essa racialização, se mantém há quase 100 anos.” 

Segundo dados do Cofen, 649 óbitos em razão da covid-19 entre profissionais da enfermagem foram registrados, sendo que boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde já apontam que a maioria das contaminações ocorre entre auxiliares de enfermagem.

Considerando a informação, é possível afirmar que as profissionais negras, são, mais uma vez, as mais afetadas.

“Se a maior parte desse processo de adoecimento e morte aconteceu em postos de nível médio, porque é a maior força de trabalho da enfermagem e quem está mais próximo do cuidado direto do paciente, são as mulheres com maior vulnerabilidade social as mais atingidas”, ressalta Almeida, citando a tripla jornada de trabalho dessas profissionais.

Geralmente, dois vínculos empregatícios devido à baixa remuneração e o trabalho doméstico imposto ao gênero feminino.

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Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, a enfermeira aposentada fala ainda sobre a sobrecarga mental e importância da profissão em meio à pandemia.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato - Qual a importância das enfermeiras, auxiliares e técnicas de enfermagem para a saúde pública e, principalmente, em meio à pandemia?

Alva Helena - A enfermagem é vital. Geralmente a mídia faz uma menção a profissionais médicos ou profissionais de saúde, mas a enfermagem é aquela equipe que operacionaliza toda a atenção à saúde do ponto de vista mais próximos dos pacientes. São enfermeiras atendendo não só pacientes hospitalizados, em uma situação de risco ou maior gravidade, mas as profissionais, de uma maneira geral, estão em qualquer outro serviço. 

Nas unidades básicas, de pronto atendimento, pronto-socorro. É essa equipe que vai prestar o cuidado à população de uma maneira geral, estando ela doente ou não. Nesse momento em que tivemos o início da vacinação também. A atividade de vacinar é mais uma que a enfermagem está assumindo no contexto da pandemia. 

As outras atividades dos serviços de atenção básica continuam e agora acrescenta-se a vacinação contra covid-19. Do acolhimento ao cuidado do corpo pós morte, tudo que você imaginar, passa pelas mãos da enfermagem. Não existe atenção à saúde sem enfermagem.

Para além da sobrecarga de trabalho, como fica a saúde mental da categoria neste momento? Com tantas mortes e colapsos do sistema de saúde?

A saúde mental foi identificada como um dos grandes agravantes nessa situação de recrudescimento da pandemia, motivado pelo estresse, pelo desconhecido. Hoje acumulamos conhecimentos em relação ao vírus, a sua forma de atuação, mecanismos de proteção, técnicas específicas no cuidado direto aos pacientes, a questão do distanciamento, de técnicas específicas em uma situação de acolhimento.

Mas, um ano atrás, isso não era dessa forma, com essa profundidade de conhecimento. Lidar com o desconhecido e em uma condição de despreparo técnico e de equipamentos, era uma situação de bastante estresse.

Há relatos de profissionais que se afastaram, adoeceram, tiveram problemas de equilíbrio durante o desenvolvimento de suas atividades por conta desse estresse. Além disso, se soma a isso, a condição crônica de subdimensionamento do pessoal da enfermagem.

Não existe atenção à saúde sem enfermagem

No país, podemos falar em pelo menos uma década, uma década e meia, que os serviços de saúde operam com o quadro da enfermagem subdimensionado. Há uma sobrecarga que é crônica e, além disso, o estresse em relação ao desconhecido em condições inadequadas. Isso configurou um quadro de maior exposição e desgaste físico e mental das profissionais.

Particularmente é uma maioria de mulheres. Se considerar os postos de ensino médio, auxiliares e técnicas, elas têm no mínimo dois vínculos empregatícios. Deslocam-se de um serviço para outro, depois para domicílio, com medo da contaminação de familiares, de filhos. Isso implicou em uma série de questões nas relações familiares e interpessoais dessas profissionais, promovendo a expansão da questão do estresse.

Sabemos que as mulheres têm dupla jornada de trabalho, mas como você citou, no caso de muitas profissionais da enfermagem é tripla, com dois empregos e o trabalho doméstico. Como está sendo para essas profissionais lidar com o peso da tripla jornada em meio à pandemia?

É uma sobrecarga absurda. Não necessariamente são vínculos em dois hospitais, mas pode ser atenção básica em determinado período e depois o deslocamento para o serviço hospitalar.  Ou dois vínculos hospitalares. Existe a possibilidade de programação da jornada de forma que cumpra vínculos em dias alternados.

Além dos vínculos empregatícios essas profissionais têm a jornada de cuidados da casa, da família, e crianças que ficaram nos domicílios e precisavam de acompanhamento no desenvolvimento escolar. 

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Isso tudo foram aspectos dessa dinâmica bastante intensificada nesse momento de pandemia. Não é só o trabalho fora, mas o trabalho dentro de casa, a atenção ao familiar que pode ter necessidades de saúde, que precisa de cuidados e proteção para evitar a contaminação.

E a presença de filhos, menores, adolescentes, que estão em casa e precisam de uma atenção dessa profissional.

Sabemos que o racismo é estrutural na sociedade brasileira e é uma outra questão que você aborda em suas contribuições. Qual a situação das enfermeiras negras nesse momento? 

Seria legal retroceder na história da enfermagem para chegarmos ao presente. Antes da profissionalização na enfermagem, que teve início no século passado em 1923, data do primeiro curso de enfermagem do país, no Rio de Janeiro, o cuidado à saúde era desenvolvido por mulheres negras, escravizadas ou libertas, e indígenas.

Esse era o grupo que prestava cuidado para as crianças, aos adoecidos, idosos e ao parto. Com a profissionalização, determinou-se como critérios para ingresso no primeiro curso, década de 20 do século passado, que as profissionais deveriam ter o curso normal e ser da raça branca.

Isso eliminou o contingente de mulheres pobres, negras e indígenas que estavam habituadas a exercer o trabalho. As mulheres negras voltam ocupar posições na estrutura do sistema de saúde na década de 30 do governo Getúlio Vargas, mas no nível médio.


Alva Helena é integrante da Articulação Nacional de Enfermagem Negra (Anem) / Foto: Arquivo Pessoal

Não tinham a escolaridade necessária para o curso de enfermagem de graduação. Essa estratificação se mantém até hoje. A maioria das mulheres em postos de nível médio são negras. E é a maior força de trabalho também. Temos uma divisão hierárquica, de classe, de raça e de funções dentro da área da enfermagem.

A maioria das profissionais do ensino médio, maior força de trabalho dentro da enfermagem, correspondem a 2/3 das áreas. Cerca de 57% são pretas e pardas. 

No caso das enfermeiras, é o contrário. Nós, enfermeiras negras, somos 1/3 da força de trabalho e 57% são enfermeiras brancas.

Então, temos uma retenção no nível médio dessas mulheres negras que têm muita dificuldade em acessar a graduação por inexistência de políticas que favorecem essa formação.

E aí temos que analisar como essas pessoas acessam a formação. Dados de pesquisa do Cofen, realizada 2013, revelam que 72% dos cargos de ensino médio, que ganham menos, acessam instituições privadas. Na graduação, apenas 30% é formado por universidades públicas, o resto é privada.

Aí está a dificuldade. Não é possível esperar que haja uma mobilidade apenas pelos sujeitos para uma igualdade racial na profissão. Essa desigualdade, essa racialização, se mantém há quase 100 anos. 

De acordo com o Cofen, o total de óbitos entre profissionais de enfermagem é de 648. Sendo a maior parte entre profissionais do ensino médio. Isso significa que o vírus também impacta diretamente as mulheres negras, certo? Há dados específicos sobre isso?

Uma das maiores demandas do movimento negro é a questão do requisito raça/cor em todas as políticas e setores. Os dados a respeito da contaminação não tem o recorte racial, existe apenas o recorte de gênero. 

Mas, podemos concluir que, se a maior parte desse processo de adoecimento e morte aconteceram em postos de nível médio, porque é a maior força de trabalho da enfermagem, quem está mais próximo do cuidado direto do paciente, são as mulheres com maior vulnerabilidade social as mais atingidas.

Estamos falando de uma parcela de mulheres que mora na periferia, que usa o transporte público, que está em territórios com mais precariedade em termos de serviço de saúde. Essas são outras questões estruturais que vulnerabilizam essa força de trabalho, esse quadro de contaminação e óbitos que chama atenção internacionalmente.

Como o coronavírus ficará registrado na trajetória dessas profissionais?

A pandemia marca uma cronicidade das precárias condições de trabalho da enfermagem e de uma maior exposição dessa profissionais diante das crise sanitária. Se as condições não fossem tão ruins, não chegaríamos a esse número de afastamento, adoecimento e mortes dessas profissionais. Veja que nesse processo da pandemia, pouca coisa mudou. Poucos são os locais, municípios, que estão contratando enfermeiras. O quadro já era deficitário, já era um quadro de exposição, de exploração, que está ainda mais sobrecarregado diante da pandemia. É um momento sofrido, marca muito.

Vale a pena observar que o setor saúde vem há décadas mostrando uma feminilização da força de trabalho. A maior parte é feminina. Se lida com hierarquias na estrutura ocupacional de um sistema suportado por mulheres.

São mulheres na recepção, nos laboratórios, nos equipamentos de raio-x, agentes comunitárias de saúde, enfermagem, maioria absoluta de mulheres. A estrutura de ocupação dos serviços de saúde se apoia em uma certa lógica de exploração da força de trabalho feminina. Exploração porque a questão salarial impacta profundamente. Se não fosse o salário insuficiente, não levaria a maioria absoluta das pessoas a buscar o segundo vínculo. 

É uma lógica de organização do sistema que expõe essas mulheres ao trabalho, ao deslocamento e ao trabalho doméstico. Espero que no prazo mais curto possível, nós, mulheres trabalhadoras da enfermagem, possamos engrossar outros movimentos de mulheres por igualdade de condições no mercado de trabalho, por maior respeito. O baixo salário no setor da saúde é um desrespeito. Precisamos mexer, transformar, mudar. Esse é o momento. Não tem outro que nos leve, seja pela dor ou pelos aplausos, a reconhecer o valor da nossa atuação profissional.

Edição: Rebeca Cavalcante