Minas Gerais

INSPIRAÇÃO

Artigo | Vozes poéticas

Poesia é representação de mundo e depende da sensibilidade do artista e de competências do leitor para construir sentido

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
"O poeta capta os sentimentos do mundo, suas vozes, para, por meio de sua própria voz poética, expressar um sentimento, que não necessariamente é o seu" - Créditos da foto: reprodução

O Dia Mundial da Poesia, celebrado em 21 de março, foi adotado pela Unesco durante sua 30a Conferência Geral em Paris, em 1999. Segundo o sítio eletrônico da entidade, objetiva “apoiar a diversidade linguística por meio da expressão poética e aumentar a oportunidade para que as línguas em perigo sejam ouvidas”. Pudesse, sugeriria, inclusive, acrescentar que as pessoas em perigo possam ser escutadas por meio de seus poemas...

Para a ocasião, compartilho com o leitor do Brasil de Fato MG um breve ensaio sobre a pergunta que não quer calar quando o assunto é arte poética. Poesia: inspiração ou transpiração? A indagação é antiga e mesmo atualmente suscita discussões. Afinal, de onde vêm os poemas?

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Na Grécia Antiga, concebeu-se que a Musa, um ser entre deuses e homens, recitava versos aos ouvidos do Aedo (cantor humano), que, então, declamava-os a seus semelhantes. Mas, ainda na Grécia Antiga, estipulou-se que, conforme a etimologia, poesia era um “fazer”.  Surgiu o embate que perdura há séculos na tradição ocidental.

O poeta e crítico mexicano Octavio Paz, na segunda metade do século 20, tenta resolver essa questão, defendendo se tratar de alteridade. Para Paz, o poeta capta os sentimentos do mundo, suas vozes, para, por meio de sua própria voz poética, expressar um sentimento, que não necessariamente é o seu. Inspirar-se em outrem para transpirar em poemas, pode-se dizer.

Em Autopsicografia, de Fernando Pessoa, Paz embasa sua formulação teórica.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Um exemplo: O operário em construção, de Vinícius de Moraes

Vinícius de Moraes nunca foi “operário”, mas, em O operário em construção, seu sujeito poético captou a transformação pela qual passa um trabalhador que, no transcorrer do poema, toma consciência da exploração a que é submetido pelo sistema capitalista.

A partir de passagem bíblica (Lucas 4, 5-8),  em que o Diabo leva Jesus ao alto monte para tentar Cristo a fazer com que o adorasse, o enunciador de Vinícius recorre a recursos poéticos  para, em figurativazações da linguagem,  expressar a relação entre patronato e operariado.

Submetendo ao crivo do leitor, como pensar em Vinícius, nesse poema: uma força misteriosa o inspirou ou em um trabalho meticuloso ele transpirou? Em outras palavras, seria inspiração de Vinícius ao ler a Bíblia? Certamente, há influência do texto religioso, tanto que alguns versículos sagrados servem de epígrafe (de tema para seu texto literário).  

Mas não se pode afirmar que, também, houve transpiração do poeta? De fato, pois há um trabalho com a língua para elaborar uma discussão acerca da expropriação das classes trabalhadoras por meio de um texto bastante acessível; isso é, um tema complexo, levado de forma, senão simples, ao menos facilmente compreensível a distintos tipos de leitores.

Com Octavio Paz, é mais acertado afirmar que Vinícius capta um sofrimento que não o seu, uma vez que não pertence à classe trabalhadora, e o versa nessa obra-prima da língua portuguesa, O operário em construção. Assim, “os que leem o que escreve” (nós, leitores) “sentem bem” “não as duas que ele teve” (qualquer sentimento do poeta ou do operário), “mas só a que eles não têm” (nós, leitores, podemos nos emocionar, mesmo com um sentimento diferente, no ato da leitura).

Poesia, como qualquer expressão artística, é representação de mundo, que depende da sensibilidade do artista, para apreender sentimentos e transformá-los em objetos estéticos, bem como das competências do leitor, na interação, para construir sentidos.

Fábio Roberto Ferreira Barreto é professor da rede municipal de ensino, em São Paulo. Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP) e autor de textos sobre literatura e metodologias de ensino. Idealizador de projetos que visam à promoção da leitura literária na periferia paulistana, é colaborador no blog LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO.

Edição: Larissa Costa