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Entre livros, armas e vírus

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"Tributar livros é uma maneira direta de dificultar que a inteligência circule, que a crítica se estabeleça, que o debate tenha mais substância" - Créditos da imagem: Reprodução
Quem taxa livros, libera armas e despreza a ciência, como Bolsonaro, sabe o que faz

Não há nada mais representativo do governo Bolsonaro que o estímulo à posse de armas e a taxação de livros. Armas servem para matar; livros para pensar. Não é preciso dizer mais nada. Alguns poderiam defender que revólveres, pistolas e fuzis são instrumentos de defesa. Mentira. O que garante a vida é a cultura de paz, não o incentivo ao revide armado. Ou que os livros são objeto de elite e por isso mereçam tributação. Outra mentira – até mesmo porque nossa elite não é dada a leitura...

A equação que pretende o equilíbrio na posse do arsenal entre dois lados contrários (pode ser uma guerra ou uma discussão de trânsito) é, na verdade, um estímulo ao armamentismo irracional.

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Como entender, por exemplo, que a uma pessoa com duas mãos seja dada a liberdade de comprar não apenas quatro, como já estava na lei, mas seis armas? O sentimento de poder dado por uma arma não se justifica pela preservação da vida, mas pela possibilidade de matar o outro. No coração do ódio, a matemática enlouquece.

É a mesma lógica que alimentou, durante a Guerra Fria e com repercussão até os dias de hoje, a corrida do armamentismo nuclear. De uma hora para outra, algumas nações passaram a competir em termos de quantas vezes eram capazes de exterminar toda a população do planeta: dez, quinze, vinte. A crença na morte era tão poderosa que seria preciso multiplicar vidas imaginárias para cumprir seu desígnio exterminador.

Outra consequência dessa aventura foi a autoproclamação dos merecedores de armas nucleares em face aos arrivistas do poder militar. Para alguns países era permitido possuir não apenas armas, mas produção continuada de poderio bélico, enquanto a outros era decretada a proibição explícita de desenvolvimento de tecnologia nuclear além de um patamar de segurança aos quais as grandes potências não estão submetidas. O limite de enriquecimento de elementos radioativos e o desarmamento nuclear eram sempre problemas dos outros.

Bolsonaro é astuto na destruição e orgulhoso do mal. O genocídio não é obra do acaso

Do confronto entre nações ao cenário de violência cotidiana, há uma continuidade perversa. Todas as pesquisas sérias já estabeleceram a relação direta entre aumento de armas em circulação e violência. No entanto, e é aí que o desprezo aos livros mostra sua influência, os defensores do porte e posse de artefatos mortais não querem saber de argumentos. A eles basta a evidência de que violência se combate com violência, de preferência de maior potencial destrutivo, em sentido contrário.

Bolsonaro prometeu armar a população desde que se lançou candidato a presidente. Na verdade, trata-se de bandeira contumaz do parlamentar que menos aprovou projetos na história do Congresso. Sua obsessão com os artefatos tem raízes que vão de sua formação militar ao convívio com outras agremiações menos canônicas. Seus filhos fazem cursos de tiro e exibem armas na cintura. O símbolo de sua campanha foi uma ridícula “arminha” feita com os dedos apontados para adversários e comunistas, não necessariamente nessa ordem.

O novo decreto que flexibiliza o uso de armas, mesmo com parte vetada pelo STF, já está em vigência e extrapola as atribuições do Executivo, que não poderia legislar sobre o tema, apenas regulamentá-lo.

O presidente abriu a porteira e fez acenos a grupos aparentemente anódinos, como caçadores, colecionadores e atiradores, que se tornam uma espécie de milícia legal paramilitar em sua autorização para manter arsenais próprios com, sabe-se lá, que destinação. A autorização para compra de munição por parte dos atiradores, por exemplo, chega à casa das dezenas de milhares de projéteis, mais que a população da maioria das cidades brasileiras. Isso para um único “atirador”.

Caçadores? Colecionadores? Atiradores? Não se pode levar a sério que categorias tão minoritárias e desimportantes tenham merecido expressa citação na regulamentação de lei tão sensível à segurança do país. Tudo indica que se cria aqui um precedente perigoso, como um almoxarifado para garantir condições materiais para atos de exceção ou revolta contra a ordem democrática. Ou, no mínimo, abastecer de mais insegurança o mercado de um país em que circulam armas roubadas e contrabandeadas aos milhares e em calibres de escala bélica.

O presidente, filhos e companhia não gostam de cultura e conhecimento, são inimigos da pluralidade

Pela multiplicação de artefatos que passarão a circular com autorização da lei no primeiro momento, esse mercado tornará ainda mais lucrativo e mais perigoso o confronto entre a segurança pública e o crime, com o cidadão em meio à linha de tiro. Se já é difícil segurar uma arma nas mãos de autoridades constituídas (haja vista a quantidade de “armas privativas das Forças Armadas” que circulam entre bandidos), imaginem quando estiverem no poder de possíveis laranjas que respondem pelas categorias contempladas pelo decreto.

Ignorância ativa

Para completar o par anticivilização, o governo Bolsonaro caprichou. Decidiu retirar a isenção de impostos dos livros, sob o argumento preconceituoso de que pobre não compra livros e, com isso, a imunidade tributária beneficiaria apenas os ricos.  É claro que o governo não se importa com os pobres, nem mesmo com o aumento da arrecadação. A alça de mira está em outro alvo: a leitura. Tributar livros é uma maneira direta de dificultar que a inteligência circule, que a crítica se estabeleça, que o debate tenha mais substância. Uma contribuição ativa para a ignorância.

O presidente, filhos e companhia, como se sabe, não gostam de cultura e conhecimento. Desprezam a ciência, têm alergia à educação, são inimigos da pluralidade de visões de mundo. A taxação de livros se agrega a toda pauta contra a educação e as universidades que vem dirigindo as ações do governo desde seu início. O atual ministro da Educação está passando a boiada em meio a pandemia, franqueando áreas da pasta a evangélicos, perseguindo as instituições de pesquisa e deixando correr solta a conversa sobre escola sem partido, ideologia de gênero e educação domiciliar.

O coronavírus pega carona nessas duas vertentes. Da facilitação das armas de fogo herda a ideologia individualista, que considera que os problemas da sociedade – saúde pública inclusive – são de responsabilidade de cada um, que pode escolher a melhor forma de se proteger ou se expor, sem responsabilidade solidária com a comunidade.

Já quem defende as armas nas mãos do cidadão acredita que o interesse pessoal suplanta o coletivo em matéria de segurança pública, mesmo contra todas as evidências. Há uma correlação simbólica forte entre flexibilização de armas de fogo e flexibilização de medidas de proteção sanitária. Nos dois casos, a ideia enviesada de liberdade se firma como atitude egoísta em contraposição ao interesse público.

A disseminação da covid-19 também se fortalece com os impostos sobre os livros. É mais uma atitude contra a ciência, uma comprovação do império da ignorância e do desprezo ao conhecimento e à pesquisa, além de afronta ao setor educacional. A pandemia, e tudo que ele exige em termos de preparação para sua identificação, tratamento, profilaxia e imunização, se fortalece num cenário que afronta o saber. Há uma cloroquina real, comprovadamente ineficaz, e uma cloroquina imaginária, que mina a razão em nome de uma visão deturpada da realidade. O presidente fica com as duas.

Quem taxa livros, libera armas e despreza a ciência, como Bolsonaro, sabe o que faz e onde quer chegar. Talvez seja a única situação em que “Bolsonaro” e “saber” façam parte da mesma frase.  Há uma astúcia na destruição e certo orgulho do mal. O genocídio não é obra do acaso.

Edição: Elis Almeida