Minas Gerais

CATARSE  

Artigo | Quem faz sentido é soldado

O artista não precisa saber conceituar sua arte filosoficamente e o poeta não precisa ser compreendido para ser poeta

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
gilberto gil
"Gilberto Gil é a aliteração mais linda do Brasil" - Créditos da foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Tive uma crise de riso de perder o fôlego.  Existem situações que quando relembradas desencadeiam gargalhadas descontroladas. Não curto economizar risada.  Rir continua sendo o melhor remédio para aliviar todo tédio. Também rio das rimas articuladas nos textos que escrevo, rio e percebo antecipadamente até as figuras de linguagem que posso usar.  Agora mesmo utilizei o código para falar do próprio código. Metalinguagem na veia!  

Escrever é gozo transcendental entre tempo e pensamento. Também amo as metáforas. Gilberto Gil tem uma composição primorosa Metáfora que diz o seguinte:

“Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: lata
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: meta
Pode estar querendo dizer o inatingível”

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Quando ouvi essa música pela primeira vez fiquei impactado com o jogo de palavras e com as possibilidades filosóficas e estéticas da letra.  Gilberto Gil é a aliteração mais linda do Brasil. E suas reflexões cantantes revelam que é necessário andar com fé porque ela não costuma falhar. Gil é um poeta que potencializa a linguagem popular, as tradições de uma Bahia desigual, mas incrivelmente abençoada por um Santo que Deus deu. Suas músicas são sentidas e reinterpretadas mundo a fora. Uma legião de canções consagradas pelo imaginário popular, outras pouco conhecidas pelo grande público como Metáfora.

Reza a lenda que outro consagrado compositor perguntou a Gil: que diabo é uma metáfora? Gil respondeu, com toda baianidade possível, que tem coisa que não dá para explicar. Realmente existem compositores que desconhecem o que é uma metáfora, mas praticam poesia todo dia. O artista não precisa saber conceituar sua arte filosoficamente, basta praticá-la com o prazer da fluidez e da técnica. O poeta não precisa ser compreendido para ser poeta, o ator não justifica a cena, ele a faz. O pintor não retrata apenas a paisagem, suas imagens são o inconsciente. 

Nem tudo precisa fazer sentido. Mas sentimos visceralmente a catarse quando o sentido é arquitetado pelo poder da criação. A catarse é o método de expulsão, pois coloca para fora aquilo que é anormal à natureza humana em sua totalidade. Esse termo foi desenvolvido pelo filósofo Aristóteles na obra Poética. De acordo com ele, a catarse provoca uma descarga emocional. A propósito, o gatilho que desencadeou minha crise de riso foi um poema do

Carlos Moreira que diz:

“Que fique muito mal explicado
Não faço força para ser entendido
Quem faz sentido é soldado”

A compreensão do poema de Moreira e sua ironia contextualizada dialogam com uma intertextualidade ambivalente que gera o duplo sentido. Quase morri de rir com gargalhadas hiperbólicas. Rir de si mesmo é uma catarse sem precedentes conceituais. 

Éverlan Stutz é poeta, ator, jornalista, professor e compositor.

Edição: Rafaella Dotta